quinta-feira, 9 de abril de 2009

meninas más


(Adriano: você pediu e aí vão uns trechos de Cassandra, com falatório meu. Ouvi dizer que vovó R. deleitava-se na rede com essas leituras malditas, que lhe chegavam junto com as remessas d'O Cruzeiro, vindas da capital.)

As protagonistas

Em Eu sou uma lésbica, a protagonista é Flávia, mulher adulta que relembra sua iniciação sexual, aos 7 anos, com uma vizinha amiga de sua mãe, seu namoro adolescente com Núcia, aventuras posteriores… até o reencontro final, com seu objeto de desejo. A história de Flávia é, porém, sobretudo o relato de uma incômoda lembrança, de uma perturbadora cena inaugural, o crime cometido na infância, e jamais descoberto: o assassinato de Seu Eduardo, marido de Kênia, visto pela criança como o responsável pelo rompimento abrupto de seu relacionamento clandestino.

A protagonista de Marcella assim se apresenta:

“Sou Anastácia Marques, simples funcionária de medíocre firma. Tenho 26 anos, mas sempre me sinto como se tivesse 18 e às vezes quatro aninhos. Sou morena. Um metro e sessenta e seis de altura. Magra. Esguia. Pacata. E trabalho demais.”

Em romance posterior e quase homônimo, Marcellina (1977), é a colega de trabalho de Anastácia quem tem voz, e a descreve nestes termos:

“[…] senti falta de uma subalterna. De uma empregada. Lembrei de Anastácia. Dos seus sapatos surrados, nos seus primeiros dias ali e ela me olhando, admirando minhas pestanas longas, meus cabelos cor-de-casca de cebola, anelados, sedosos, meus dedos longos passeando pelos tipos da máquina de escrever […] A esquisita Anastácia! […] estava sempre me observando, disfarçando quando eu me mexia. Ela me incomodava. A princípio eu ficara em dúvida quanto à sua natureza, depois, no dia-a-dia, não tive dúvidas de que era uma anormal.”

Interessante artifício dialógico que faz de dois romances simétricos e complementares: em Marcella, Anastácia é atormentada pela onipresença da distante e dominadora personagem-título, a qual no entanto participa de poucos diálogos no decorrer da trama, fazendo-se presente como uma espécie de assombração, uma eminência parda. É a obsessão de Anastácia por Marcella, seu desejo incoercível de conquistá-la, o fio condutor que perpassa a trama. Em Marcellina, é Marcellina Rodrigues Bastos (o verdadeiro nome de Marcella) quem conta sua história, sua sobrevivência como secretária na cidade de São Paulo, após a perda de seu grande amor, prostituindo-se para juntar o dinheiro necessário para uma cirurgia que restaure a visão de sua mãe. Marcella, por sua vez, é assombrada pela obsessão de sua ex-colega de trabalho, lésbica, que no início do romance lhe oferece valor equivalente ao dobro de seu salário por um programa, mas retira-se após o primeiro beijo, deixando-a nua e intrigada: “Anastácia fora embora. Pagara cinco mil cruzeiros por um beijo. […] Ela fora embora para colocar-me em seu lugar, uma desgraçada que tinha que se sujeitar a propostas e ofensas. Teria sido isso ou o quê?”

Crianças assassinas. Essas são as protagonistas de Marcella e Eu sou uma lésbica. No primeiro caso, temos Anastácia, perseguida por uma ‘cena original’ que a domina e lhe desperta um ódio incontrolável pelas mulheres infiéis, assim como a faz sentir-se criança a ponto de se urinar:

“[…] me senti criança, choramingando, esfregando os olhinhos desacostumados da luz, braços me agarrando, erguendo-me no ar, dor de cabeça, xixi escorrendo pelas minhas pernas.
- Doida, o que você fez? Como pode fazer uma coisa dessas? Eu estava despertando para a realidade e a realidade era a cara de espanto de Lilien, que pulava fora da cama molhada. O que eu fizera? Xixi em cima dela.”

Em Flávia, por sua vez, persiste a menina de sete anos, ciosa de seu brinquedo, qual seja, a mulher que com ela estabelecera um pacto clandestino: “Não conte pra ninguém, nunca, viu Flávia? Ninguém pode saber de nossa brincadeira de gatinho, só nós duas. É o nosso segredo, você promete?” No entender da menina, é Eduardo, marido de Kênia, o responsável pela quebra do pacto, ao partir com a esposa rumo à Itália. E ele paga por isso com a vida, num crime perfeito (pois todos acreditam que ele, doente de câncer, havia ingerido vidro moído propositalmente).

As musas

Estes relatos são governados por musas, mulheres inatingíveis que representam algum tipo de amor ideal. Não seriam caracterizações próximas às heroínas de Sacher-Masoch? Destas, afirma Gilles Deleuze: “As heroínas de Masoch têm em comum as formas opulentas e musculosas, um caráter altivo, uma vontade imperiosa, uma certa crueldade, mesmo na ternura ou na ingenuidade.”

Marcella (“inatingível, glacial, dos homens”) a todo momento trata Anastácia com distância, frieza e mesmo maldade, dando-lhe ordens que reafirmam a relação de dominação (“vá”,“lave”, “telefone” etc.):

“Não olhava para mim nem quando tinha de falar comigo. Estava sempre remexendo em alguma coisa e a impressão que me transmitia era que eu só servia mesmo para servicinhos de menino de entrega de supermercado. […] Isso, ela me tratava assim como se eu fosse um ser completamente desprovido de senso e noção do lugar que ocupa no mundo, à disposição de qualquer estranho que tivesse voz ativa.”

Note-se que aqui também temos um acordo tácito. Se entre Flávia e Kênia se estabelece verbalmente o compromisso de manter em segredo as ‘brincadeiras de gatinho’ (o aspecto subentendido, no caso, reside no fato de ambas fingirem não saber que a brincadeira era uma relação sexual), entre Marcella e Anastácia se estabelece automaticamente a relação senhor x escravo, em que uma manda e a outra obedece – e que não exclui uma boa bofetada, como reprimenda por uma ‘ousadia’. E não exclui, tampouco, a “tarefa pedagógica” a ser desempenhada pela escrava, e que Deleuze identifica nos personagens de Masoch . Assim é que Marcella concede, diante de um pedido de perdão por parte de Anastácia (“Pode descontar o prejuízo todo mês do meu ordenado até que dê.”): “-Não é preciso descontar nada. Está bem, esqueça, afinal não podemos trabalhar junto [sic.] sem ter que comunicar-nos uma com a outra, mas tome jeito e deixe de ser tão estabanada e sem educação…”

Um comentário:

  1. A história é mais barra-pesada que imaginava. Pensava que era só sacanagem, apesar de vovó R...

    Seu relato é muito bom e dá uma visão da obra como um todo.

    Dos trechos que você postou, adorei a parte em que a Marcela mesmo se deliciando com a admiração que provocava ainda assim lhe sapeca: é uma anormal!

    ResponderExcluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.