domingo, 11 de julho de 2010

Ocaso Bruno: um país no espelho (parte I)


“A gente pensou que fosse uma prostituta”

(Justificativa apresentada à policia pelos agressores da empregada doméstica Syrlei Dias, no Rio de Janeiro, em junho de 2007)

“Homem feliz, mulher carente / A linda rosa perdeu pro cravo”

(“Linda Rosa”, Maria Gadú)



Para aqueles que acompanham, entre excitados e estarrecidos, a trama macabra em que se vai convertendo o ‘Caso Bruno’, à medida em que se o deslinda, e andam já fartos de comentários aparvalhados de especialistas improvisados, de linhas mal-traçadas por leigos em sobressalto, a pontuar esta nova experiência de exorcismo coletivo... aqui vai mais uma contribuição não-solicitada.

Começo aclarando que, rubro-negro de berço, jamais nutri simpatia pelo ex-defensor de nossas redes. Achava-o, antes de mais, inadequado para a função que, em todo caso, exercia geralmente muito bem – o que em mais de uma ocasião reconheci, juntando-me, na arquibancada, ao coro dos que o celebravam como “o melhor goleiro do Brasil”. Isso com aquela ponderação e comedimento comuns no calor da refrega. Explico a inadequação com base numa tese que muitas mesas de bar já ouviram: há no futebol uma lei não-escrita (e não-escritas são as leis que de fato regem o futebol e a vida) segundo a qual, para cada posição num time, corresponde idealmente um tipo de personalidade. Daí o zagueiro que não tem olhos nem ouvidos para poesia, preferindo resolver os lances com uma prosa enxuta, até desavergonhadamente crua; o meio-campo armador, cerebral e criativo, cabeça erguida, capaz de antever jogadas e distribuir a bola como uma espécie de regente (e que é também, muitas vezes, o primeiro-violino); o centroavante imprevisível, escorregadio, traiçoeiro como um predador, explosivo no temperamento como nas arrancadas rumo ao gol adversário. Daí, também, a inconveniência de ter sob as traves, último guardião das redes que queremos imaculadas, não um gigante de nervos inquebrantáveis, todo ele equilíbrio e serenidade, mas um sujeito insolente, arrogante, genioso.

E era genioso, nervosinho, o nosso guarda-metas – como, inclusive, o queixo de um colega de time teve a infelicidade de testemunhar.

Era, porém, algo mais que isso, coisa que os feitos, os fatos aos poucos vão evidenciando. Com sua postura e expressão que pouco modulavam (variava quase que só do casmurro ao indiferente), transmitindo a auto-confiança de algum tipo de iluminado (embora uma e outra derrota tenham-lhe arrancado um choro infantil), o famigerado goleiro era uma espécie de estrangeiro num mundo permeado de afetos. A expressão “tô me lixando”, ainda que possivelmente colhida de modo malicioso por uma imprensa sempre afeita ao sensacionalismo, após uma partida infeliz, torna-se agora, à luz da tragédia, o seu leitmotiv (celebrizou-se, também, sua declaração sobre a naturalidade de bater em mulher). Bruno estava – e ao que parece, ainda está – se lixando. Para a vida de uma pessoa, para o rumo da sua própria, para a opinião de quantos opinem. Teria chegado a dizer que um dia iria rir de tudo isso.

Essa indiferença, que no romance de Camus incita a indignação do júri contra o personagem Meursault – o qual, além de assassinar um desconhecido que nada lhe fizera, sequer se emocionara no enterro da própria mãe – é também o traço que instila, compreensivelmente, a revolta popular (alimentada, ainda, pelo vedetismo de um delegado e o tom amarronzado de quase toda a cobertura da imprensa) que hoje faz da penitenciária, ao que parece, a morada mais segura para o nosso ex-ídolo decapitado.

Curiosa ou tragicamente, no entanto, tudo indica haver sido a impossibilidade de ser indiferente, e não a sua tendência contumaz a sê-lo, um dos erros capitais do presumido assassino, que lhe privaram (e à sua turma) da impunidade. Vejamos: um dos deslizes da trupe de delinquentes foi o envolvimento de muitos cúmplices, um dos quais, o ‘de menor’, absolutamente despreparado para emoções tão escabrosas. Faltou-lhe estômago para a barbárie, e o seu apavoramento o fez dar com a língua nos dentes, causando a reviravolta conclusiva num inquérito que talvez caminhasse para o arquivamento, como tantos outros desprovidos de apelo midiático, ou manipulados por advogados nutridos de quantias persuasivas. Este, portanto, um dos erros. O enredo, porém, padecia já de uma falha na origem, e esta era a existência do recém-nascido. O bebê desmamado era, desde o início, a evidência – suficiente para açular a intuição de qualquer detetive – de que algo grave havia acontecido à mãe. Há mães que abandonam neonatos, verdade, mas a grande maioria não o faz, e é ainda menos provável que o faça uma mãe que a tudo se expõe para ver reconhecida a paternidade de seu filho, paternidade a qual significaria, também, outras conquistas menos sentimentais e mais objetivas para o seu pequeno mundo. Tampouco parece crível que depositasse justo nas mãos de sua rival, a esposa do pai da criança, a prenda de que dependiam todos os seus projetos. Eliza Samudio, portanto, deveria estar morta, assassinada; restava encontrar-lhe o corpo e desvendar a trama, ligando os pontos.

Se Bruno esteve, de fato, presente à cena do sacrifício e intercedeu pela criança – fazendo lembrar, de certa forma, aquela passagem do Rei Salomão –, então esse lapso de afeição o driblou, ao produzir uma das mais significativas evidências do crime. Afinal, Eliza era puta (mais uma de tantas alugadas para tantos festins comemorativos), e puta, no quadro de valores que ele compartilhava com boa parte da população brasileira, inclusive com muitos dos que o hoje o xingam, é uma espécie de subcategoria de uma categoria já de si inferior, desprezível, a das mulheres (lembremos o postulado sobre a naturalidade de agredi-las); era ainda, na sua percepção, uma chantagista. Assim, não custava muito, não custaria nada, aliás, à sua mente já moldada para a crueldade pela indiferença, decretar a depredação física de Elisa-Geni, e enfim a extinção de sua vida. Puni-la exemplarmente era mesmo um dever, mais até que um direito. No entanto, repetir a dose com o bebê, provavelmente seu (dele) filho, entregando-o à lâmina de açougueiro do ex-policial, marginal escolado (e condecorado), era um mister da lógica criminosa ao qual o goleiro não soube ou não pôde obedecer.

“Se acontecer alguma coisa comigo, você já sabe quem foi”, escreveu Eliza para uma amiga, informando o seu – último – paradeiro. A frase expõe a consciência, pela vítima, do risco a que se expunha: algo grave poderia lhe acontecer, e ela poderia não estar mais por aqui para apontar o culpado (ou seja, poderia estar morta), desta forma avisava a uma amiga enquanto ainda podia. Ela já havia sido surrada por Bruno, conhecia-lhe a índole, o ódio, e podia prever que a próxima peia seria fatal. Curioso é que nada faça para impedi-lo: ela prefere ir ao encontro do algoz a deixar, por exemplo, a cargo de advogados a intermediação dos contatos. Como se pressentisse que aquele capítulo fosse um desenlace natural de sua vida.

Explico: nos filmes em que atuou, nunca como estrela principal, Eliza viveu uma espécie de ritualização, se bem que muito mais leve, do sacrifício que enfrentaria na gleba do goleiro: era estapeada, xingada, penetrada com fúria, sodomizada com evidente sadismo, enquanto gritava de dor – para deleite de um público que decerto abaixava o som para não se denunciar aos vizinhos, assim como Bruno e seus amigos ligavam um som alto de festa para abafar-lhe os gritos, ao espancá-la. A ironia cruel na trajetória de Eliza é que apenas a brutalização real de seu corpo, ao preço de sua vida, daria visibilidade àquela brutalização encenada na pornografia, transformando em sucesso as fitas em que atuou, e fazendo dela, enfim, uma celebridade.

6 comentários:

  1. adorei, pedro! disse muito do que eu também penso sobre essa história toda. Resta o lado obscuro da coisa, que nunca saberemos de todo: o que tanto ela sabia para ser morta? Afinal, que notícia-aviso-recado endereçados a tantas outras pessoas são esses que se veiculam com atuantes de times de futebol/ celebridades atrelados a mortes, narcotráfico, máfias brasileiras? Há algo bem podre no reino de nossa dinamarca...

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  2. Pedro, parabéns!

    Você vai ao ponto - a crise de valores. Impressiona-me como ela a tudo entranha em nosso país. E não só no nosso, claro, mas na contemporaneidade em geral. Vide Millenium, do nosso amigo sueco Stieg Larsson, exempli gratia.

    Ela penetra em todas as instituições, das mais "comuns" às mais "nobres", contamina ambos os gêneros, todas as gerações, a família, a universidade "pública e gratuita" - sobre a privada, no comments. Crise de valores éticos, de autoridade, de disciplina, impunidade, vale-tudo, salve-se-quem-puder, na prática e na teoria. Daí, o meu desalento, a minha aposentadoria precoce. Precoce, ma non troppo. Já estou com 67. Precoce só por conta de não esperar a "expulsória" aos 70.

    É cada vez mais raro topar com alguém que reme contra a corrente. Pero que las hay, sí, las hay - você é prova ambulante e escrevente. Há mais. Por isso que, mesmo aposentado, ainda mantenho dois encontros semanais com um grupo de pessoas interessadas em discutir a vida (sob pretexto de discutir a arquitetura) na pós, na FAU/UnB. Um restinho de alento - que dure!... (vai com cópia para o grupo e mais um punhado de diletos amigos)

    Caso contrário, fazer como a personagem de Melina Mercouri no inesquecível “Nunca aos domingos” de Jules Dassin, ao ler o final das tragédias gregas com um otimismo inquebrantável: irmos todos, felizes, sorridentes e abraçados, para a praia!

    Abração

    Fred

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  3. Pedro, tenho três fortes motivos para nunca ter considerado o Bruno um grande goleiro, embora reconheça que mais de uma vez ele salvou as balizas rubro-negras:
    1) Ele não sai na bola lançada sobre a área pela lateral. Parece ter medo de perder o tempo de bola.
    2) O goleiro, como o rei no xadrez, tem que ser considerado intocável. Faz parte de suas atribuições, então, esparrar com a zaga desatenta. Eu nunca o vi exercendo esse comando.
    3) Na hora H, apesar dos belos vôos, o Bruno joga quando quer. Não me conformo com o gol de desclassificação na Libertadores. Acho que ele tirou a mão.

    A respeito do crime, ao que parece ele é mesmo o principal suspeito. Não tenho acompanhado muito. Triste como a vida humana é perdida por motivos tão torpes.

    Seu post tá muito bom. O final me fez recordar 'twin peaks'.

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  4. Ana Lígia: é verdade, algo cheira mal... e talvez aquilo que não sabemos tenha a ver, sei lá, com coisas que entopem as narinas. Fred, aposentaria mais precoce que a tua é a do Bruno, até porque, você sabe, os goleiros costumam permanecer mais tempo em atividade que os jogadores de linha. De qualquer forma, estando ou não em sala de aula, eu sei que você não pendurou as chuteiras. Adriano, concordo com a sua avaliação, e reproduzo o que meu camarada PC observou: "Uma ironia: Camus, criador de Mersault, dizia: 'é a grande área o lugar onde melhor se conhece um homem. Detalhe: Camus era goleiro amador na Argélia.

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  5. Disse tudo, Pedro. Adentrou a raiz do pensamento machista, no qual, mulher não tem valor. Pensou ela, pobre aproveitadora, que se daria bem em cima de alguém inatíngivel. Ele, por sua vez, deve ter rido da infeliz. Quando ela começou a lhe causar problemas, ele pôs fim a uma vida que nada valia, nem para ele, nem para a sociedade.

    Belo texto, assim que tiver tempo, leio o outro.

    Bjo

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  6. Uma boa análise da situação Bruno:
    http://www.revistaforum.com.br/blog/2010/07/07/a-cronica-esportiva-e-seus-brunos/

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