segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Olhai por nós - parte I


F., cirurgião-dentista bem–sucedido, vive numa casa de vários quartos no Lago Sul, em Brasília. É casado com uma juíza de Direito, com quem tem um bonito casal de filhos: uma moça de 17 anos que se prepara para o vestibular, e um rapaz de 20 que cursa Administração.
O que poucos sabem é que F. mantém guardado, a sete chaves, um segredo tenebroso. No início dos anos 70, auge da repressão militar, ele era um residente de odontologia, no Rio de Janeiro, ambicioso e disposto a quase tudo para crescer na futura carreira. Assim, encontrou nos porões do DOI-CODI um meio de ganhar experiência, acesso a gente influente e, de quebra, dinheiro para se sustentar por conta própria. Seu trabalho consistia, fundamentalmente, em assistir sessões de tortura de prisioneiros políticos, monitorando-lhes os sinais vitais, para evitar que viessem a expirar antes de revelar os segredos buscados pelos agentes da repressão. Às vezes cabia-lhe, também, reanimar os desfalecidos, para que o interrogatório tivesse prosseguimento.
O sentimento de culpa deixado por essa experiência é matizado, em sua consciência, por racionalizações do tipo “eu fiz o que tinha que fazer / se não fosse eu, seria outro / os militantes de esquerda também cometiam brutalidades / no fundo, contribuí para a causa da democracia” etc. Seu currículo de profissional exemplar é intocado pelas manchas desse passado sombrio. No entanto, F. é um homem intranquilo, que ingere calmantes com frequência. Gritos, gemidos e rostos de vítimas da repressão aparecem-lhe com assiduidade, tanto em sonhos como em horas de vigília. A pior dessas assombrações, a mais presente, é uma jovem professora de História, recém-casada e mãe de uma menina de um ano. Considerada líder de uma célula “terrorista”, a jovem foi seviciada com extremo sadismo e afinal jogada ao mar de um helicóptero, praticamente morta – processo que F. acompanhou, auxiliando-o, do início ao fim.
A jovem professora aparece sobretudo quando F. experimenta momentos prazerosos na vida em família – o sexo com a esposa, uma viagem agradável, o aniversário de um filho – como a cobrar-lhe a felicidade conjugal de que foi privada. Por vezes, F. vê no rosto de uma desconhecida qualquer os traços daquela professorinha, quarenta anos passados. Teria ela sobrevivido, contrariando toda lógica?
As aparições misteriosas, os pressentimentos incômodos e a sensação de perseguição se intensificam à medida que F. se informa, pelo noticiário, da intenção do governo de instalar uma Comissão da Verdade, que irá identificar (e punir, ele assim o entende) os agentes da repressão dos anos de chumbo, a exemplo do ocorrido na Argentina e no Uruguai. O fato de não ser militar não o tranquiliza: F. sente que é questão de tempo para que o desmascaramento afinal ocorra, fazendo ruir sua vida conjugal, profissional – sua vida, enfim. O noticiário sobre a Comissão se amplifica em sua cabeça, o obseda, e pessoas na rua, no trabalho, parecem fitá-lo de modo malicioso, ou hostil, como se já soubessem de tudo.  

Olhai por nós - parte II


F. está aterrorizado, e precisa agir. Quer encontrar a professora de História, explicar-se e pedir perdão. Quer fazê-la ver que ele não é mais aquele jovem inconsequente, e sim um homem maduro, ciente de seus deveres, bom pai de família, que se comove com o sofrimento alheio e se arrepende do mal que causou. Pode inclusive ajudá-la financeiramente, como forma de compensação. Viaja ao Rio atrás de seus rastos, imaginando poder encontrá-la viva. Localiza-lhe a filha, com quem chega a trocar algumas palavras, sem se identificar. Procura generais reformados, inquire-os sobre o paradeiro da infeliz: tudo leva a crer que ela, como seria de esperar, está de fato morta há muitos anos, havendo seus restos virado repasto da fauna marinha.
De volta à capital, F. tem dificuldade em se concentrar no trabalho e aparentar normalidade aos olhos da família. Esquece-se de coisas importantes, atrapalha-se com tarefas cotidianas, demonstra ansiedade: todos notam que está diferente, esquisito. Sem sucesso nas tentativas de fazê-lo se abrir, a juíza insinua que ele deveria buscar o auxílio de um psiquiatra. Ele, porém, resiste à ideia de se confidenciar com alguém da área médica, sempre temendo a delação. E sente, por meio de pequenos sinais misteriosos (vozes, vultos, objetos que somem e reaparecem), que há uma presença estranha, sobrenatural em sua vida: os aflitos do DOI-CODI, a professora à frente deles.
Pressionado pelo desespero, vendo-se sem saída, F. deixa de lado o racionalismo, que não lhe traz sossego, e procura uma vidente de quem ouvira falar. A mulher lê sua sorte numa borra de café, diagnostica que ele vive um momento de retorno do passado, escreve num guardanapo e entrega-lhe um aforismo de Heráclito de Éfeso, sobre a necessidade de “se livrar dos mortos”. Por vias tortuosas, F. chega, em seguida, a um médium que atende numa espécie de choupana, em Águas Lindas de Goiás (nome que sempre lhe pareceu grotescamente irônico). Mestre Raimundo, como é chamado aquele mulato alto, de traços rudes, promete-lhe entrar em contato com a “entidade” que o assombra. Ao fim de um ritual que, aos olhos de F., combina charlatanismo descarado com fenômenos verdadeiramente inquietantes, o Mestre lhe fala, com expressão enigmática e voz feminina: “Você não dorme enquanto eu não dormir”.
F. volta para casa, deita-se ao lado da esposa que ressona e, de fato, não consegue conciliar o sono até o raiar do dia, quando enfim cochila, não muito antes de o despertador arrancá-lo da cama para mais um dia de trabalho. A insônia se repete à noite. No noticiário, F. vê que o projeto da Comissão da Verdade ainda se arrasta, atacado por setores conservadores – sobretudo militares da reserva – e visto com desconfiança pela grande imprensa. O presidente da República defende a instalação da Comissão, a necessidade de investigar o paradeiro das vítimas da ditadura, porém assegura que em seu governo “não há lugar para revanchismo”. Isso, porém, não tranquiliza F., e na realidade tampouco aumenta sua aflição: desde o início da insônia (ele dorme cada vez menos, até passar a atravessar todas as noites e dias em vigília) o cirurgião se vê tomado de uma modorra irresistível, o raciocínio torna-se lento e decresce sua vontade de interagir com o mundo.
O que segue é o declínio acelerado da vida de F.: a saúde o abandona progressivamente; o casamento não sobrevive; os filhos se distanciam, horrorizados com sua situação e comprometidos com a própria felicidade; as investigações dos neurologistas sobre sua patologia se revelam infrutíferas e ele, mais e mais debilitado física e psicologicamente pela falta de sono, é afastado do trabalho e afinal aposentado por invalidez. Passa os últimos dias num sala-e-quarto pouco mobiliado, prostrado numa cama da qual nunca se levanta, assistido por enfermeiros que se revezam por turnos.
Numa noite em que se acha sozinho, diante de uma TV a que assiste quase sem decifrar o que é exibido, F. percebe a luz do banheiro acesa. Os sons provindos de lá, e uma sombra em movimento projetada na parede, certificam-lhe de que há alguém ali dentro. Ele nada faz, pois nada pode fazer. Sequer chega a se inquietar, realmente. Afinal, sai do banheiro e adentra a suíte uma mulher, vestida de camisola e enxugando o cabelo com movimentos agitados. O doutor a reconhece sem dificuldade: é a professora de História, conservada em plena juventude, apesar dos anos passados. Ela exala um perfume agradável, de banho. Apanha o controle e desliga a TV, dizendo: “-Já chega de TV, né...”. Então se senta à beira da cama e programa o despertador. Em seguida se deita sob as cobertas, abraça-o e beija-o no rosto, dizendo docemente: “-Boa noite, querido...” Apreciando, com o que lhe resta de sensibilidade, aquele aconchego, F. fica olhando para o teto, inerte, por alguns minutos, até adormecer para sempre. 

(Ilustração: Lupin)