Com a epopeia racista O sobrevivente, anuncia-se melancólica a despedida de um grande cineasta
Werner Herzog é um cineasta
atraído pelo estranho, pelo não-familiar, como demonstram o tenebroso clássico
Nosferatu, a comédia bizarra
Também os anões começaram pequenos, e
obras como
Fata Morgana e
O enigma de Kaspar Hausen. É, ainda, um
artista interessado pelo confronto do homem com os limites de sua condição,
tema abordado em
Fitzcarraldo, em
Aguirre, a glória dos deuses e no
recente
O homem urso, documentário
sobre o convívio – de trágico desenlace – de um ambientalista norte-americano
com os ursos do Alaska. Assim, não é de surpreender que esse bávaro sexagenário
se tenha interessado pelo relato de Dieter Dengler
,
piloto estadunidense de origem alemã capturado pelos vietcongues durante a
Guerra do Vietnã. É evidente, também, que o cineasta alemão tinha consciência
de que, neste caso, a dramatização da experiência individual de confronto com
uma situação-limite necessariamente implicaria um posicionamento político. Isto
porque, para desgosto de sofisticados críticos e estudiosos de cinema que
prefeririam ver a sétima arte a salvo das máculas dessa coisa suja que é a
política, a Guerra do Vietnã é um tema incontornavelmente... político.
Isso dito, cabe examinar que
efeito político estaria buscando alguém que, em 2006 (praticamente, portanto,
no trigésimo aniversário do fim das agressões), se dedica a produzir um
longa-metragem sobre aquele conflito armado. Afinal de contas, a Guerra do
Vietnã – que pôs fim às vidas de algo como dois milhões de vietnamitas e 58 mil
norte-americanos – é hoje um tema relativamente distante até para os nativos
daquele país, os quais, sedentos de investimento estrangeiro, receberam o
Presidente Clinton no ano 2000 com festa e trêmulas bandeirinhas. O Vietnã mais próximo do espectador
contemporâneo é, portanto, o Iraque, e podemos afirmar sem hesitação que um
recado sobre o Vietnã, em 2006 ou em 2009, é um recado sobre o Iraque.
E o Iraque é isso que temos
visto: uma invasão imperialista extemporânea, baseada em justificativa
fraudulenta, que até o momento já cobrou a vida de mais de três mil soldados
estadunidenses (recrutados preferencialmente na classe-média baixa das áreas
desindustrializadas daquele país, onde grassa o desemprego e a falta de
perspectivas) e mais de meio milhão de iraquianos, entre militares e civis,
além da destruição da infra-estrutura local. Um conflito que se prolonga
indefinidamente, como se prolongara o Vietnã, sem que os agressores articulem
sequer um plano de retirada
,
e gerando subprodutos de triste memória, como as torturas de Abu Ghrabi e o
campo de concentração de Guantánamo, erguido em território invadido da
República de Cuba. Em suma, uma catástrofe humanitária e um desastre político
de tal ordem que nem mesmo o candidato do Partido Republicano ousou defendê-la
com todas as letras na última campanha presidencial dos EUA.
Por outro lado, os filmes sobre o
Vietnã são uma hoje uma modalidade do cinema hollywoodiano, contando com
dezenas de produções entre clássicos e enlatados, de modo que uma nova produção
sobre o tema está necessariamente em diálogo com essa tradição. Tradição que,
em alguns de seus momentos de maior brilho, esteve distante da apologia à
agressão: em M.A.S.H., Robert Altman
ridiculariza a guerra, retratando-a como um evento absurdo levado a cabo por
militares estúpidos e inconsequentes, destituídos de glória; Nascido para matar e Apocalypse, now, de Stanley Kubrick e
Francis Ford Coppola, respectivamente, mostram a guerra como o domínio do
horror, o mergulho na insanidade, o aflorar do que existe de pior na natureza
humana. Mas talvez a mais emblemática, a mais contundente produção sobre o
conflito seja o documentário Corações e
mentes (Hearts and Minds, 1974), de Peter Davis. Neste filme, realizado no
apagar das luzes do conflito e com imagens colhidas no front, o cineasta desconstrói o discurso triunfalista
norte-americano, contrapondo-o à dor dos vitimados pela invasão. Que espectador
poderia espancar da memória o plano-sequência em que, ao pranto desconsolado de
um menino vietnamita à beira da cova do pai, pranto que se prolonga por longos
segundos de dor, contrapõe-se a tranquila empáfia de um militar estadunidense
de alta patente, o qual se põe a teorizar sobre a indiferença dos orientais em
face da morte? Além de retratar a pobreza e o sofrimento dos vencedores, Corações e mentes dá voz ainda aos
militares dos EUA mutilados e traumatizados pelo conflito, e põe em cena o duro
aprendizado da distância entre a realidade e o ufanismo belicista.
O mote de O sobrevivente, no entanto, é a solidariedade ao agressor. Sabemos,
a história nos conta, que os pilotos norte-americanos invadiam o espaço aéreo
do Vietnã para lançar bombas e napalm
sobre as tropas resistentes e os plantadores de arroz, e que isso cobrou as
vidas de milhares de cidadãos daquela pobre nação asiática. No entanto –
pasmem! – é o sofrimento de um desses pilotos e de seus colegas invasores que
Herzog escolhe retratar. Cena após cena, somos levados a nos penalizar pelos
suplícios que esses infelizes cativos enfrentam nas mãos de seus algozes (como
se fossem eles, digamos, turistas em férias apanhados por malfeitores), um dos
quais inclusive apelidado de ‘Hitlerzinho’, por sua destacada maldade. Ironia
das ironias: sabemos nós e o sabe Herzog que Adolf Hitler foi um invasor, um
expansionista cioso de sua crença na supremacia de seu povo, e o apodo recai,
aqui, sobre um sujeito que reage violentamente contra aqueles que invadem seu
país, convencidos de sua (deles) superioridade.
Pois O sobrevivente é, basicamente, um filme racista. Poucas vezes,
desde os velhos filmes de Tarzan, terá o cinema apresentado uma tal dicotomia
étnica, sustentada sem vacilo do primeiro ao último fotograma. Ao longo de todo o filme, as falas dos
nativos sequer são traduzidas, restando assim um ruído, uma algaravia sem
sentido – claro sinal de que, para o diretor, pouco importa o que aquela gente
tem a dizer. Não é assim nos filmes do rei da selva, quando os civilizados
ocidentais se deparam com imperscrutáveis línguas tribais, que apenas reforçam
o exotismo dos seus falantes? Herzog foi também cuidadoso na distribuição de
atributos psicológicos, ficando os norte-americanos com as variações do temor,
da coragem, da solidariedade, da tenacidade e da ironia, enquanto os guardiões
orientais limitam-se a executar tarefas repressivas e a explodir em risos
sádicos e bestiais demonstrações de fúria. Essa humanização de uns e
desumanização de outros é sintetizada muito objetivamente na escolha dos nomes
dos personagens: de um lado, Dieter, Norman, Farkas; de outro, os apodos
‘Little Hitler’, ‘Crazy Horse’, ‘Jumbo’. Aliás, é este último personagem
vietnamita, um anão gracioso em sua obtusidade, quase um animalzinho, que
recebe dos norte-americanos esse apelido entre carinhoso e sarcástico por sua
pouca estatura e disposição servil, é Jumbo quem melhor oferece um contraste
para a heróica caracterização de Little
Dieter: este, um líder nato, de inabalável superioridade moral, inatingível
em sua astúcia, em seu bom humor frente às adversidades, sua impermeabilidade à
reflexão (em algum momento Dieter se pergunta se teria sido acertado lançar-se
ao extermínio de plantadores de arroz? Nunca).
A sequência final de O sobrevivente é de tal modo intragável
que até mesmo o hebdomadário brasileiro Veja
– cujas idiossincrasias, inclusive no que toca à apreciação da produção
cultural hegemônica, são bastante conhecidas – teve que reparar-lhe o açucarado
triunfalismo. Já se disse que o
passado é imprevisível, e da mesma forma como estadistas aposentados
apressam-se em reescrever a História em suas caudalosas memórias (Henry
Kissinger, por exemplo, teria conhecido um apego à democracia e aos direitos
humanos ao recriar sua vida pregressa), a sétima arte, com eficácia talvez
maior, pode dar testemunho convincente do que nunca existiu – como por exemplo,
a liberação de Auschwitz por tropas dos EUA, retratada em A vida é bela. Assim, o grotesco ufanismo de empréstimo com que Herzog
encerra seu filme oferece àqueles que, como ele, se solidarizam com o
intervencionismo norte-americano, o agradável contentamento por uma vitória que
jamais ocorreu (o truque é confundir a vitória pessoal do piloto com um triunfo
militar de seu país de adoção) – e assim, quem sabe, prepare corações e mentes
para a difícil tarefa de chamar de êxito o pântano iraquiano.
Findo o suplício – o de Dieter e
o nosso – fica a pergunta: reacionarismo à parte, o que leva um artista de
renome a descer tão baixo, no apagar das luzes de sua brilhante carreira? O que
justificaria um oportunismo tão rasteiro? E fica ainda a tristeza de ver, à
frente de projeto tão abertamente racista, um representante de uma geração
alemã que, nascida em plena II Guerra Mundial, conheceu de perto as desastrosas
consequências do ódio racial.