sexta-feira, 31 de março de 2017

Entre "tenentes togados" e longevas ratazanas

(Deu no Painel do Leitor da Folha de S. Paulo de hoje. Edita daqui, enxuga de lá, acabou ficando incompreensível. A íntegra era esta aqui.)

Resumo do artigo da tríade de procuradores publicado na Folha de hoje (Tendências/Debates, 30/03/2017): os políticos (e empresários) não podem estar acima da lei; juízes e procuradores, sim. Ou seja, em nome da nobre - e, de resto, inquestionável - causa do combate à corrupção, os fins justificariam os meios, e toda tentativa de conter abusos deve ser considerada "ameaça", tentativa de "intimidar autoridades". Ora, a deplorável anistia ao "caixa 2", aventada até nos mais altos tribunais, não se confunde com a bem-vinda iniciativa de coibir o abuso de autoridade. 

Difícil não pensar que estamos entre a cruz e a espada: de um lado, o messianismo de "tenentes togados", que negam a política e se ofendem com toda crítica; de outro, o descaramento crescente de representantes da velha casta política que há muito se locupleta em tenebrosas transações.



Nessa atmosfera rarefeita, uma lufada de ar fresco vem, por exemplo, do surgimento de associações como o Coletivo Transforma MP (constituído por procuradores que desejam um Ministério Público aberto, plural e democrático) e da luta diária de uma minoria de parlamentares que não se deixa seduzir, seja pelos holofotes da mídia, seja pelo atraente tempero dos "acarajés".

quinta-feira, 30 de março de 2017

Lolito (ou Doria-estepe)

Aspirante a atriz, a moça "vaza" para a imprensa que passou a noite na suíte de um certo cantor famoso. Inevitavelmente entrevistada, ela fala, excitada, de viagens que teriam feito juntos a Dubai e Malibu. Incontinente, exibe uns presentinhos que ganhou do cantor, como um urso de pelúcia gigante e um celular banhado em ouro. Quando a reportagem afinal interroga se estão namorando, ela desconversa, muda o tom, quase disfarça o sorriso franzindo a testa: "Nada disso... nós somos apenas bons amigos... qualquer coisa diferente disso é pura especulação, fofoca."

Esse é o esquema da entrevista de página inteira (!) do apresentador Luciano Huck a um dos jornais de maior circulação do país. Sim, a Folha de S. Paulo se prestou a fazer um balão de ensaio para o PSDB, testando uma "cara nova" de corte conservador (mas jovial) e sem ranço anti-PT. O político-não-político se mostrando presidenciável-não-presidenciável. Quanto a Huck, pode-se - e deve-se - questionar suas credenciais políticas, mas não há como negar que ele conhece a engrenagem da indústria de celebridades.


Será que vai colar?

sexta-feira, 24 de março de 2017

No país precário


Há um par de horas, eu perambulava pela rodoviária de Brasília, “vagaroso, de mãos pensas”, sorvendo o ar pesado e quente enquanto ruminava sobre o indescritível projeto de terceirização irrestrita aprovado pela igualmente indescritível maioria de deputados da legislatura corrente, nesta quadra de nossa História também de difícil descrição. Havia acabado de ler o belo artigo do professor Vladimir Saflate na Folha de S. Paulo de hoje (“O fim do emprego”), escrito com raiva pungente e contagiante, e visto, numa banca, a capa da última edição do jornal da família Marinho, tão abjeta quanto previsível.

Então me deparei com uma cena que me impressionou: dois camelôs – um homem e uma mulher – brigavam incessantemente, indo quase às vias de fato, por um palmo de espaço no vão da rodoviária, onde queriam expor suas mercadorias, em meio à pletora de vendedores ali instalados. Ele ofertava capas e carregadores de celular; ela expunha roupas femininas, shorts e blusas pelo que pude ver.  A discussão parecia não ter solução à vista, pois não havia como decidir quem tinha mais direito àquele palmo em disputa. À volta deles, claro, formava-se um agrupamento crescente, com aquela passividade de curiosos (eu mesmo observava a cena num espanto imóvel), em meio aos quais se podiam adivinhar alguns olhares sedentos, de apostadores de rinhas de galo. Uns gaiatos imitavam sirenes de polícia; outros criavam uma onda de gritos abafados, sopro de combustível no fogo em brasa.

Afastei-me dali sem saber como a coisa terminou. A bem da verdade, a coisa não termina: naquele lugar-síntese, por onde circulam diariamente milhares de trabalhadores pobres, os nossos palestinos que vão e voltam de Israel a cada jornada, a disputa intransigente, desesperada por um palmo de chão para vender mercadoria barata arranjada de contrabando expunha a precariedade que aí está, dando uma amostra do horror que se anuncia.

(Imagem: Rugendas, "Castigos domésticos")

quinta-feira, 23 de março de 2017

Data venia, omnia vanitas

Em 1988, finda a ditadura, mas com o soturno SNI ainda em atividade, o humorístico Planeta Diário (autodenominado "o maior jornal do planeta") registrou uma missão presidencial com a impagável manchete: "Depois da China, Sarney irá à merda". Após consultar seus assessores, conta-se, o mandatário Ribamar Sarney - acidentalmente catapultado ao mais alto posto da República - houve por bem nada fazer a respeito da debochada ofensa. 

Já em 2017 (portanto, supõe-se, na vigência de um amadurecido estado de direito democrático), um juiz de piso manda "coercitar", isto é, intimidar, um blogueiro que conta com seu desapreço. O motivo declarado seria apurar um vazamento indevido de informação - prática, aliás, em que o próprio magistrado já incorreu notória e impunemente. Para piorar, o buliçoso juiz teria usado como justificativa o argumento de que, por não ter canudo de jornalista, o blogueiro em questão não faria jus ao sigilo de fonte. Ora, é improvável que, com todo o seu mérito, o Meritíssimo desconheça o texto do artigo 5º, XIV, da Lei Maior: "é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional"; ou ainda que ignore a decisão do STF, de 2009, segundo a qual é inconstitucional a obrigatoriedade de diploma de jornalista para o exercício de atividade na área.

Estranhos tempos, estes que engendram agigantados liliputianos...