domingo, 22 de novembro de 2015

Afetos em disputa




A recente tragédia de Paris, ocorrida quase ao mesmo tempo que a de Beirute e a de Mariana, detonou um animado - para não dizer inflamado - debate sobre o tema da indignação seletiva. Não é a primeira vez que isso se dá, e provavelmente não será a última. A discussão, se bem que não pareça muito produtiva, tem um aspecto positivo, na medida em que revela um incômodo, um desconforto com a ideia de que certas vidas humanas têm maior valor que outras, e por isso merecem maior cuidado e maior pranto. Além disso, há a amarga constatação de que essa valoração é marcada por diferenças étnicas e disparidades econômicas - ecos da "conquista da Terra", que, como bem disse Joseph Conrad, "na maior parte consiste em tirá-la daqueles que têm uma fisionomia diferente ou narizes mais achatados que os nossos".

Isso dito, um problema permanece: ora, a indignação é sempre seletiva. Nenhum de nós tem disponibilidade afetiva para se deixar atingir de igual forma por todos os dramas e tragédias que afligem todos os seres humanos - e ainda os outros seres. Somos mais atingidos pelo que nos é mais próximo. Por que Paris nos afeta tanto? Por que é parte do nosso imaginário, de ocidentais (e não só), o que é o mesmo que dizer que é parte de nós. As vítimas massacradas, ou quase, na cidade-luz estavam assistindo a um show, relaxando num café, desfrutando de um restaurante, torcendo no estádio. Como disseram alguns comentaristas: os jihadistas alvejaram um certo modo de vida.

Mas não é cruel que um massacre perpetrado no nordeste do Quênia ou na Nigéria passe quase despercebido, e inclusive dure pouco no noticiário ("é solitário morrer na África", constatou o editor de um jornal namibiano)? Sim, é cruel. Em face disso, o que podemos fazer? Podemos buscar expandir nosso imaginário, nossa sensibilidade, abrindo espaço para outras narrativas, outros hábitos e culturas, para além da dieta costumeira. Isso precisa ser feito - e para isso é fundamental, inclusive, democratizar os meios de comunicação (esse debate que vem sendo vedado no Brasil). A construção do imaginário há de ser a mãe de todas as táticas políticas.

Ainda assim, talvez não devêssemos ter a ilusão de que um dia amaremos igualmente a humanidade inteira... Ficaremos frustrados com nós mesmos.

Levante no quartel de Abrantes

Assim como é conversa fiada a história de que um gesto de Fernando Gabeira - gesto meio arrogante, e a meu ver tingido de certo preconceito - apeou Severino Cavalcanti da presidência da Câmara dos Deputados, há uma década, também dista da verdade o conto segundo o qual a deputada Mara Gabrili, com a força de sua voz tíbia, teria sido decisiva para o momentoso esvaziamento do plenário daquela Casa, na tarde da última quinta-feira (19/11) - protesto que vem sendo apontado como o começo do fim da Era Cunha. Ora, o desgaste de Don Cunha não teve início agora. O audacioso político carioca vem dando mostras de desconhecer - ou, em todo o caso, ignorar - uma lição fundamental lapidada nas ruas do Rio de Janeiro, qual seja: "malandro demais se atrapalha"; da qual decorre o sábio conselho: "malandragem, dá um tempo..." 

Demais disso, até a relva da Esplanada sabe que Gabrili era, até outro dia, cupincha de Cosentino Cunha, e que seu partido, o PSDB, liderado na Câmara pelo inefável Carlos Sampaio, engrossava a tropa de il Capo, na esperança (vã), de um impeachment que lhe restituísse a eleição perdida.

Não se pode, porém, negar que Gabrili demonstrou um grande senso de oportunidade, seguindo a re-orientação de sua agremiação partidária, que agora busca aproveitar o vácuo - ético, moral, político - deixado pelo apoio envergonhado e vergonhoso do PT, o PT de Sibá (esse agrupamento amedrontado e constrangido que pouco lembra o aguerrido partido de outrora) à permanência de Cunha et caterva à frente da Casa do Povo.

(Justiça seja feita a deputados petistas que corajosamente rechaçam o opróbrio, como Henrique Fontana, Maria do Rosário, Wadih Damous e Margarida Salomão, entre outros.)

Na sessão de quinta-feira, quando a fala infantil de Gabrili irrompeu pedindo "por favor" que seu querido Cunha se afastasse da presidência, o parlamentar já estava sob o fogo de dezenas de colegas, de quase todo o espectro ideológico, que repeliam sua mais nova manobra inaceitável em causa própria. Mas foi na bela deputada que nossa grande mídia identificou o símbolo ideal desse "Fora, Cunha" que se afigura irreversível: frágil em sua condição de cadeirante, ela é algo assim como Davi contra Golias. 

Musa anódina e inofensiva, Mara simboliza a esperança de que a mudança venha - mas venha como no romance de Lampedusa, deixando as coisas como estão.



terça-feira, 3 de novembro de 2015

No lar de Olugatany

No segundo dia, descemos até o rio, atravessando a densa mata. Junto à margem havia muitas pedras, algumas lisas e escarpadas, e logo adiante uma formação que chamarei ilhota: um aglomerado de capim, raízes e arbustos. Ali sempre havia sombra. Dali, resguardados, observamos com admiração uma família de leões, reunidos na pequena praia, a uma distância de uns 500 metros. Destacavam-se do entorno pela pelagem dourada, que reluzia ao sol. Um ou outro nos terá visto, mas pareceram não nos dar importância. Restaram entretidos consigo mesmos, as crianças mexendo com a água, talvez por haverem avistado algum peixe. Em todo o caso, voltamos.

Na manhã seguinte, ninguém parecia querer se mexer. Eu queria. Desci, sozinho, até o rio. Como era agradável desfrutar daquele silêncio... isto é, o marulho doce da água corrente, os namoros de pássaros, os zumbidos de insetos... Uma camada de som envolvendo, mansa, o ambiente. Banhei-me próximo à ilhota, absorto em meus pensamentos. 

Estava assim quando ouvi um ruído rouco, abafado. Pensei numa pedra rolando sobre outra, embebida n’água. Mas, subindo à ilhota e contornando-a, avistei. Um leão havia atravessado uma boa porção do rio e agora caminhava, vagaroso, sobre pedras submersas (curiosamente, não molhara senão as patas). Não tinha juba: era, portanto, um jovem ou fêmea. O ruído teria sido, eu pensava agora, um seu grunhido, ou de fato uma pedra, deslocada pelo felino em seu périplo. O animal ainda não estava próximo a mim, mas trazia a inconfundível postura e o olhar atento de caçador espreitando a presa – que, no caso, só poderia ser eu. 

Dizem que, em situações assim, não se deve correr, demonstrando medo – dica interessante, mas que equivale a dizer que, em situação de pânico, não se deve entrar em pânico. Segui meu instinto e corri, saltando sobre as pedras semi-submersas. Só olhei para trás para divisar, num átimo, a fera saltando como eu, apenas com maior destreza. Apavorado como estava, era-me dificílimo, impossível quase, fazer aquele trajeto sem me acidentar. Pior: eu descobria que o caminho de volta, normalmente simples, tornava-se, naquela circunstância, um labirinto intransponível.


(Henri Rousseau)