segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Epílogo da farsa - O fim do interregno democrático (1985-2016) e início da restauração conservadora

Instalada no Senado Federal, a farsa do impeachment vai, afinal, chegando ao seu desfecho, e a essa altura já não se tenta ocultar a natureza farsesca do processo. O pertinente e preciso editorial do Le Monde, a sorridente sinceridade do senador Álvaro Dias, os interrogatórios que passam ao largo da acusação imputada à Presidente da República (à falta de coisa concreta, há quem afirme julgar “o conjunto da obra”)... de todo lado e o tempo todo vemos evidências de que Dilma Rousseff está sendo deposta sob pretexto de um crime inexistente. Deposta, portanto, de forma ilegal. Em nome do combate à corrupção, da “restauração da confiança”, a faixa presidencial, que no último pleito 54 milhões de brasileiros entenderam por bem manter com a petista, deverá ser envergada por Michel Temer, do notório PMDB, octa-investigado na Lava Jato.

A ópera bufa do julgamento sem crime deixará na História uma lamentável fauna liliputiana, de que nos recordaremos com vergonha e desgosto. As cenas deste segundo ato, até, aqui, já nos brindaram com a pregação “anti-bolivariana” da indescritível Janaína Paschoal, jurista extraída do anonimato ao assinar o pedido de impeachment junto ao homem-ressentimento em que se transformou Hélio Pereira Bicudo; a desfaçatez e o senso de oportunidade do também ressentido Cristovam Buarque; o arroubo calculado de Renan Calheiros, bem-sucedido cruzamento de raposa com ratazana em quem os governos petistas depositaram demasiada confiança; e ainda a fúria de capitão-do-mato do “coroné” Ronaldo Caiado, definido por seu ex-amigo Demóstenes Torres como “uma voz à procura de um cérebro”.

Aliás, junto com a máscara dos novos golpistas, caiu, também, neste segundo ato, o mito da “civilidade” da Câmara Alta em comparação à barbárie dos deputados, exposta no show de horrores de 17 de abril. Seria aquela, na visão de alguns, algo assim como uma academia de notáveis. Ora, se a Câmara dos Deputados exibe, hoje, a pior composição de que se tem memória, o que se vê no Senado tampouco é de encher os olhos. Nossa Câmara Baixa tem sido frequentada, é verdade, por dezenas de figuras do naipe de Caio Narcio e de Bolsonaro pai e filho; mas no Senado despontam criaturas como Magno Malta e o citado fazendeiro goiano.

O que essa gente ruidosa está pondo em prática é nada menos que a implosão de um pilar da democracia liberal, qual seja, a obrigatoriedade de se disputar e vencer eleições para chegar ao poder. De 1985 até aqui, o sistema vinha funcionando consideravelmente bem, com a realização periódica de eleições em todos os níveis e, no geral, com um bom grau de aceitação do resultado por parte dos derrotados – ao menos, nunca se tinha visto tentativa séria de virada de mesa. A virada se dá agora, com o assalto ao poder, por meio do golpe parlamentar, pela turma que se viu alijada do poder central e suas benesses nos anos do lulismo (basicamente DEM e PSDB) , junto àqueles que desembarcaram da nau petista a tempo de abocanhar nacos ainda maiores das nossas apetitosas sesmarias (PMDB e congêneres).



PT e seus aliados (sobrou apenas PCdoB, não é isso?) precisam avaliar os acontecimentos correntes com profundo senso de auto-crítica. É improvável que isso ocorra, pois é difícil fazer auto-crítica sob chumbo grosso, e mais ainda quando se encara a disputa política com os olhos embotados de fanatismo. Não obstante, é urgente refletir, por exemplo, sobre a crença excessiva no conto de fadas da conciliação de classes, como também sobre a excessiva condescendência com práticas tradicionais da plutocracia brasileira, que levaram lideranças partidárias à cadeia e ao opróbrio, além de naturalizar o hábito de tratar de negócios com Sarney, Jucá, Kassab e até mesmo Don Cunha. Não nos enganemos, porém: em que pesem seus erros, grandes e pequenos, não são eles, petistas, os coveiros da nossa democracia. Responsabilizá-los pelo golpe seria algo como atribuir a culpa do estupro à vítima e sua saia curta. Não: a culpa é dos estupradores.

Se o dístico “ordem e progresso” estampado em nossa bandeira já soava incomodamente irônico, em face da dura realidade, agora, com a cassação dos votos de 54 milhões de cidadãos por um punhado de senadores, é o lema constitucional “todo o poder emana do povo” que se torna jocoso. O que é deplorável. Neste país de tradição autoritária, o fim do interregno democrático (1985-2016) e início da restauração conservadora nos mergulha em profunda incerteza e desperta velhos fantasmas adormecidos.