quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Questões peripatéticas





Rápida tentativa de apreensão do fenômeno. A nova configuração do parlamento grego pode ser interpretada como uma fotografia de uma onda política que se reflete noutros países do Velho Continente (França, Espanha...) - e pode inspirar lições alhures. Em síntese, trata-se do desprestígio dos tradicionais partidos à esquerda e à direita, e a concomitante ascensão de agremiações de esquerda e direita novas, ditas "radicais" (no caso grego, o Syriza e o partido neonazista).

Por que a esquerda e a direita tradicionais descontentaram seus eleitores e perderam apoio? Uma hipótese: porque ficaram, insossamente, muito parecidas. Parecidas na insuficiente lisura no trato com a coisa pública, e também em seus programas. A esquerda tradicional desagrada ao cidadão progressista, que exige mudanças profundas; a direita tradicional não supre a necessidade de segurança do eleitor conservador. No vácuo de ambas, ascendem (experiência fortuita?) uma esquerda menos aferrada ao leito de Procusto da ortodoxia liberal, e uma direita menos comprometida com os valores democráticos. Faltasse tudo a ambas (consistência, competência...), não lhes faltaria isso: uma identidade clara. Está em xeque o liberalismo? O que surgirá - e se consolidará - como alternativa?

E agora lemos que, para compor o governo, o "furacão" Syriza alia-se ao Gregos Independentes, conservador. Vamos ver o que sairá daí. Cenário facilmente previsível: o novo governo não levará a Grécia ao Olimpo que esperam seus mais entusiasmados apoiadores, nem ao inferno que antevêem as cassandras de direita, como as que sobejam na imprensa tupiniquim. Será algo na linha Brasil 2002?

Alea jacta est! (Opa, isso é latim...)

King Kong, um filme latente


Fiel ao argumento original, King Kong (1976) é um filme sexual, sem sexo. Resgatada seminua de um bote à deriva no Oceano Pacífico, a aspirante a atriz Dwan (Jessica Lange em seu esplendor) torna-se companheira de viagem da tripulação – masculina – de um navio petroleiro em nebulosa expedição. E permanece pouco vestida, pois adapta (customiza, se preferirem) os trajes que lhe são doados pelos marinheiros, adequando-os a uma moda-praia feminina e sexy. Dwan é toda entrega, espontaneidade, saúde e sorriso. A hipótese de estupro parece não passar por sua cabeça, e talvez estivesse mesmo distante, pois, naquele caso específico, os rudes aventureiros confinados em alto mar revelam-se bons samaritanos – ao menos no que tange ao belo esporte. As ambíguas referências que Dwan, divertida, faz a um filme pornô (“Eu fui salva pela garganta profunda!”) produzem em seus companheiros indiferença ou leve embaraço.

Então chegamos à ilha misteriosa. Os ‘selvagens’ tentam intercambiar seis negras pela loira (a carne mais barata do mercado é a carne negra, como canta Elza Soares?), sem sucesso, restando-lhes  raptá-la. Afinal Dwan é apresentada, isto é, ofertada, ao majestoso primata. Os nativos parecem apostar numa hipótese psicanalítica: a agressividade do monstro é um reflexo neurótico de sua frustração sexual; apaziguados seus instintos, a vizinhança haverá de ter sossego.

Gorila antropomorfizado, King Kong move-se ereto e soberbo. Como a dupla do conto A bela e a fera, Kong e Dwan formam um par ao mesmo tempo esdrúxulo  e harmonioso: diferentes em quase tudo, os dois têm o desejo à flor da pele, o que os aproxima entre si e os difere dos homens obcecados por suas quimeras (a ciência, o capital). A cada investida do macaco, Dwan apenas finge resistir, enquanto se deixa agarrar pela mão possante da besta-fera. 


E Jack Prescott, o magnâmimo paleontologista vivido por Jeff Bridges? Ah, Prescott é um homem gentil, bem-intencionado, mas um amante hesitante. Para ele, a moça com brilho nos olhos e peito arfante pode aguardar um pouco, enquanto ele termina de armazenar mantimentos para uma expedição à ilha de Kong – isso, sim, prioritário e urgente. Além disso, Prescott parece querer cercar-se de garantias quanto às perspectivas da vida a dois (“Você precisa de um estilo de vida que eu não posso lhe proporcionar” – lamenta, a certa altura, o mal remunerado professor). Belo estímulo ao impasse. Sim, Prescott é um austero devoto da ciência e Dwan, uma aspirante às luzes da ribalta. Mas a maior dificuldade entre eles talvez seja o fato de os dois terem, na verdade, o mesmo objeto de desejo: o gorila King Kong. Um triângulo amoroso assim inusitado poderia prosperar? Não chegamos a saber.
Ao fim, próxima ao imponente cadáver de Kong, Dwan é cercada por curiosos e câmeras e disparos de flashes. Torna-se, enfim, uma celebridade. Mas como é amargo o sabor dessa conquista!