segunda-feira, 12 de julho de 2010

sem deus


“Frequentemente penso que a religião, como o Sol, extinguiu as estrelas com menos fulgor, mas não menos beleza, que brilham sobre nós das trevas de um universo sem deus. O esplendor da vida humana, tenho certeza, é maior para aqueles que não se deixam ofuscar pela irradiação divina; e o congraçamento humano parece se tornar mais íntimo e terno com o sentimento de que somos todos exilados numa mesma praia inóspita.”

(Bertrand Russel, citado por George Steiner, citado por LF Veríssimo, que cito.)

domingo, 11 de julho de 2010

Ocaso Bruno: um país no espelho (parte II)


Deslizes à parte, a crônica tem dito e continuará a dizer, possivelmente com carradas de razão, que a trama macabra reflete uma crise de valores: assim, o encontro de trágico desenlace entre o valentão novo-rico e a maria-chuteira, tendo como coadjuvantes uma esposa possessiva e um punhado de desqualificados dispostos a matar por dois dinheiros, daria a ver o espírito de um tempo no qual (tanto mais nesse vazio de quase tudo que é, no geral, a cultura brasileira massificada) o ser humano se coisifica, torna-se um bem descartável, e nessa coisificação nossa esmaecem – desmancham no ar, diria Marx – valores de importância capital, como o respeito à vida, a compaixão, a solidariedade etc. Uma comparação, na frieza dos números, entre a bancarrota financeira que se projeta para o ex-atleta, em face da tragédia, e a despesa que lhe poderia advir de um hipotético acordo com a mãe da criança, dá cores de absurdo ao enredo, esse enredo em que o dinheiro seria o Astro-Rei, e somos afinal levados a indagar, como a policial grávida do filme Fargo, pelo sentido dessa merda toda.

Nessa linha da crise de valores, aponta-se agora a coincidência, nas biografias da morta e do algoz (para além da sinistra complementaridade entre seus tipos psicológicos), residente no fato de ambos serem fruto de
famílias disfuncionais. Verdade que há considerável vagueza em relação ao que seria uma família ‘funcional’, mas é provável que um círculo onde um em cada dois tem passagem pela polícia, com implicação em crimes como estupro e tentativa de homicídio, forneça pouco esteio para uma existência socialmente aceita. Resta saber, de todo modo, o que a sapiência científica de fato explica.

Mais que a escassez de valores, chamam-me a atenção precisamente os valores que afloram, não exatamente na trama, mas na sua repercussão. A atuação de Eliza como profissional do sexo (fato cuja ocultação, no início da divulgação do caso, terá facilitado a ampla identificação com a vítima: ela era ‘a jovem’, ‘a estudante’) divide as arquibancadas. Há aqueles, e também aquelas (não esqueçamos que no Brasil é comum as mulheres ecoarem os conceitos machistas mais primitivos) que condenam inapelavelmente a prostituta e, discretamente ou nem tanto, opinam que ela teve o que mereceu, de modo que os rapazes de Minas fizeram um bom trabalho. Diga-se de passagem que o encantador paraíso mineiro – sede do entendimento, do acordo e da malícia, fonte da nossa melhor poesia – já encabeçou as macabras estatísticas de assassinatos de mulheres por seus companheiros. A maior parte do público, contudo, parece abraçar, hesitante, a proposição “ela era uma vagabunda,
mas isso não justifica o que fizeram, né...” É o que se ouve nas esquinas, nas barbearias, nas aglomerações em frente às bancas de jornais, nos papos entre colegas de trabalho. Formulação curiosa, que chama a atenção por dar voz àquilo que nega, ou seja: justamente porque pondera não ser a prostituição razão suficiente para uma condenação à morte, reconhece como concebível uma tal condenação (ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir, já diziam da Geni). Seguindo a mesma lógica, temos o sujeito que “é preto, mas é honesto”, e aquele que “é pobre, mas é limpinho”...

A brutalização de Eliza Samudio, em suma, é um crime singular porque nos oferece, aos brasileiros, um espelho. O país cresce, hoje, a olhos vistos, acumula feitos no combate à pobreza, e no plano material, indicam os estudiosos, descortina-se à nossa frente um período de prosperidade como
nunca visto na História desta República. É no plano imaterial, onde se acha uma coisa intangível e no entanto onipresente como os valores, que pairam as incertezas mais desconcertantes.

Em que Brasil crescerá o filho da puta?


(Ilustrações: Lupin)

Ocaso Bruno: um país no espelho (parte I)


“A gente pensou que fosse uma prostituta”

(Justificativa apresentada à policia pelos agressores da empregada doméstica Syrlei Dias, no Rio de Janeiro, em junho de 2007)

“Homem feliz, mulher carente / A linda rosa perdeu pro cravo”

(“Linda Rosa”, Maria Gadú)



Para aqueles que acompanham, entre excitados e estarrecidos, a trama macabra em que se vai convertendo o ‘Caso Bruno’, à medida em que se o deslinda, e andam já fartos de comentários aparvalhados de especialistas improvisados, de linhas mal-traçadas por leigos em sobressalto, a pontuar esta nova experiência de exorcismo coletivo... aqui vai mais uma contribuição não-solicitada.

Começo aclarando que, rubro-negro de berço, jamais nutri simpatia pelo ex-defensor de nossas redes. Achava-o, antes de mais, inadequado para a função que, em todo caso, exercia geralmente muito bem – o que em mais de uma ocasião reconheci, juntando-me, na arquibancada, ao coro dos que o celebravam como “o melhor goleiro do Brasil”. Isso com aquela ponderação e comedimento comuns no calor da refrega. Explico a inadequação com base numa tese que muitas mesas de bar já ouviram: há no futebol uma lei não-escrita (e não-escritas são as leis que de fato regem o futebol e a vida) segundo a qual, para cada posição num time, corresponde idealmente um tipo de personalidade. Daí o zagueiro que não tem olhos nem ouvidos para poesia, preferindo resolver os lances com uma prosa enxuta, até desavergonhadamente crua; o meio-campo armador, cerebral e criativo, cabeça erguida, capaz de antever jogadas e distribuir a bola como uma espécie de regente (e que é também, muitas vezes, o primeiro-violino); o centroavante imprevisível, escorregadio, traiçoeiro como um predador, explosivo no temperamento como nas arrancadas rumo ao gol adversário. Daí, também, a inconveniência de ter sob as traves, último guardião das redes que queremos imaculadas, não um gigante de nervos inquebrantáveis, todo ele equilíbrio e serenidade, mas um sujeito insolente, arrogante, genioso.

E era genioso, nervosinho, o nosso guarda-metas – como, inclusive, o queixo de um colega de time teve a infelicidade de testemunhar.

Era, porém, algo mais que isso, coisa que os feitos, os fatos aos poucos vão evidenciando. Com sua postura e expressão que pouco modulavam (variava quase que só do casmurro ao indiferente), transmitindo a auto-confiança de algum tipo de iluminado (embora uma e outra derrota tenham-lhe arrancado um choro infantil), o famigerado goleiro era uma espécie de estrangeiro num mundo permeado de afetos. A expressão “tô me lixando”, ainda que possivelmente colhida de modo malicioso por uma imprensa sempre afeita ao sensacionalismo, após uma partida infeliz, torna-se agora, à luz da tragédia, o seu leitmotiv (celebrizou-se, também, sua declaração sobre a naturalidade de bater em mulher). Bruno estava – e ao que parece, ainda está – se lixando. Para a vida de uma pessoa, para o rumo da sua própria, para a opinião de quantos opinem. Teria chegado a dizer que um dia iria rir de tudo isso.

Essa indiferença, que no romance de Camus incita a indignação do júri contra o personagem Meursault – o qual, além de assassinar um desconhecido que nada lhe fizera, sequer se emocionara no enterro da própria mãe – é também o traço que instila, compreensivelmente, a revolta popular (alimentada, ainda, pelo vedetismo de um delegado e o tom amarronzado de quase toda a cobertura da imprensa) que hoje faz da penitenciária, ao que parece, a morada mais segura para o nosso ex-ídolo decapitado.

Curiosa ou tragicamente, no entanto, tudo indica haver sido a impossibilidade de ser indiferente, e não a sua tendência contumaz a sê-lo, um dos erros capitais do presumido assassino, que lhe privaram (e à sua turma) da impunidade. Vejamos: um dos deslizes da trupe de delinquentes foi o envolvimento de muitos cúmplices, um dos quais, o ‘de menor’, absolutamente despreparado para emoções tão escabrosas. Faltou-lhe estômago para a barbárie, e o seu apavoramento o fez dar com a língua nos dentes, causando a reviravolta conclusiva num inquérito que talvez caminhasse para o arquivamento, como tantos outros desprovidos de apelo midiático, ou manipulados por advogados nutridos de quantias persuasivas. Este, portanto, um dos erros. O enredo, porém, padecia já de uma falha na origem, e esta era a existência do recém-nascido. O bebê desmamado era, desde o início, a evidência – suficiente para açular a intuição de qualquer detetive – de que algo grave havia acontecido à mãe. Há mães que abandonam neonatos, verdade, mas a grande maioria não o faz, e é ainda menos provável que o faça uma mãe que a tudo se expõe para ver reconhecida a paternidade de seu filho, paternidade a qual significaria, também, outras conquistas menos sentimentais e mais objetivas para o seu pequeno mundo. Tampouco parece crível que depositasse justo nas mãos de sua rival, a esposa do pai da criança, a prenda de que dependiam todos os seus projetos. Eliza Samudio, portanto, deveria estar morta, assassinada; restava encontrar-lhe o corpo e desvendar a trama, ligando os pontos.

Se Bruno esteve, de fato, presente à cena do sacrifício e intercedeu pela criança – fazendo lembrar, de certa forma, aquela passagem do Rei Salomão –, então esse lapso de afeição o driblou, ao produzir uma das mais significativas evidências do crime. Afinal, Eliza era puta (mais uma de tantas alugadas para tantos festins comemorativos), e puta, no quadro de valores que ele compartilhava com boa parte da população brasileira, inclusive com muitos dos que o hoje o xingam, é uma espécie de subcategoria de uma categoria já de si inferior, desprezível, a das mulheres (lembremos o postulado sobre a naturalidade de agredi-las); era ainda, na sua percepção, uma chantagista. Assim, não custava muito, não custaria nada, aliás, à sua mente já moldada para a crueldade pela indiferença, decretar a depredação física de Elisa-Geni, e enfim a extinção de sua vida. Puni-la exemplarmente era mesmo um dever, mais até que um direito. No entanto, repetir a dose com o bebê, provavelmente seu (dele) filho, entregando-o à lâmina de açougueiro do ex-policial, marginal escolado (e condecorado), era um mister da lógica criminosa ao qual o goleiro não soube ou não pôde obedecer.

“Se acontecer alguma coisa comigo, você já sabe quem foi”, escreveu Eliza para uma amiga, informando o seu – último – paradeiro. A frase expõe a consciência, pela vítima, do risco a que se expunha: algo grave poderia lhe acontecer, e ela poderia não estar mais por aqui para apontar o culpado (ou seja, poderia estar morta), desta forma avisava a uma amiga enquanto ainda podia. Ela já havia sido surrada por Bruno, conhecia-lhe a índole, o ódio, e podia prever que a próxima peia seria fatal. Curioso é que nada faça para impedi-lo: ela prefere ir ao encontro do algoz a deixar, por exemplo, a cargo de advogados a intermediação dos contatos. Como se pressentisse que aquele capítulo fosse um desenlace natural de sua vida.

Explico: nos filmes em que atuou, nunca como estrela principal, Eliza viveu uma espécie de ritualização, se bem que muito mais leve, do sacrifício que enfrentaria na gleba do goleiro: era estapeada, xingada, penetrada com fúria, sodomizada com evidente sadismo, enquanto gritava de dor – para deleite de um público que decerto abaixava o som para não se denunciar aos vizinhos, assim como Bruno e seus amigos ligavam um som alto de festa para abafar-lhe os gritos, ao espancá-la. A ironia cruel na trajetória de Eliza é que apenas a brutalização real de seu corpo, ao preço de sua vida, daria visibilidade àquela brutalização encenada na pornografia, transformando em sucesso as fitas em que atuou, e fazendo dela, enfim, uma celebridade.