Essas lembranças ganham um sentido trágico mais nítido hoje, quando o mundo inteiro, por assim dizer, chora ou em todo caso reage à morte do ‘rei do pop’, anunciada ontem. Entre centenas, milhares de comentários, alguém afirma que essa foi a morte mais lenta da história do show-business, e, diante da suspeita de suicídio por overdose, há quem se pergunte que motivos teria o astro enclausurado para não se matar. Parece que em se tratando de Michael Jackson tudo tende ao hiperbólico: talento demais, sucesso demais, dinheiro demais... e uma solidão e uma melancolia igualmente inigualáveis.
Como todos sabem, o êxito com o grupo familiar foi apenas um aperitivo para o que viria na carreira solo do cantor-dançarino. Espécie de Elvis andrógino, interpretando Don’t stop ‘till get enough movia a pélvis insinuando movimentos sexuais, cantando em falsete e emitindo gritinhos femininos. A ambiguidade continuava nos videoclipes e fotos de divulgação de Thriller, em que ele se mostrava um paquerador impetuoso, um agressivo líder de gangue e também uma diva lânguida abraçada a um mimoso filhote de tigre.
Após a assistir ao clipe de Billie Jean, o velho Fred Astaire teria telefonado para o astro, passando-lhe o bastão, ou antes: reconhecendo que o bastão passara adiante.
Como todos sabem, o auge do cantor-dançarino coincidiu com o auge de uma indústria, a qual naquela altura rivalizava, digamos assim, com a indústria bélica e superava a do entretenimento adulto. Thriller tornou-se um sucesso global insuperável, e no Brasil desbancou o disco anual de Roberto Carlos, num tempo em que o feito era notícia. Quem nunca imitou o moonwalk não foi criança nem adolescente nos anos 80, ou vivia demasiado à margem da indústria musical.
Sabemos também (no caso de Michael Jackson, quase tudo é sabido por todos) que, como em todo conto de fadas, a vida do cantor-dançarino foi marcada pela presença tirânica de um vilão absoluto, um Darth Vader, um Gepeto desumanizante: o mineiro Joe Jackson, seu pai amoroso e espancador. É tentador imaginar que as perturbadoras transformações físicas por que passou Michael Jackson, em aberto desafio à genética, à natureza, tenham sido reflexo de um esforço por diferenciar-se absolutamente de Joe Jackson - como Franz Kafka, por outros meios, buscou distanciar-se de Herrmann Kafka. O Elvis-Peter Pan diabolicamente escolheu sua própria filiação, seu próprio gênero e idade, tornando-se assim mais uma criança parecida - muito parecida, por sinal - com Liz Taylor do que um adulto parecido com Joe Jackson. Mas por muito tempo teremos que ouvir a tolice de que o seu embranquecimento foi um vergonhoso e envergonhado repúdio à negritude...
Como pouco sabemos sobre sexo e desejo, e menos ainda sobre as sutilezas que podem envolver o relacionamento entre um adulto (especialmente um adulto-criança) e um pré-adolescente, nunca saberemos o que de fato se deu naquelas noites no rancho do popstar, que motivaram seus processos por pedofilia, seu calvário nos tribunais, a autópsia do astro ainda vivo feita pelos mesmos meios de comunicação que o alçaram ao reinado e à glória. Tudo no entanto parece indicar que houve, na história, menos abuso por parte de um milionário excêntrico e pervertido que oportunismo e histeria de donas-de-casa que abominam as delícias de um blowjob, temperados por doses cavalares de morbidez e sensacionalismo ("be careful of who you love / be careful of what you do / 'cause lie becomes the truth", previra ele em Billie Jean).
Ao que parece, Jacko resolveu parar, porque já havia tido o bastante.