F.,
cirurgião-dentista bem–sucedido, vive numa casa de vários quartos no Lago Sul,
em Brasília. É casado com uma juíza de Direito, com quem tem um bonito casal de
filhos: uma moça de 17 anos que se prepara para o vestibular, e um rapaz de 20
que cursa Administração.
O
que poucos sabem é que F. mantém guardado, a sete chaves, um segredo tenebroso.
No início dos anos 70, auge da repressão militar, ele era um residente de
odontologia, no Rio de Janeiro, ambicioso e disposto a quase tudo para crescer
na futura carreira. Assim, encontrou nos porões do DOI-CODI um meio de ganhar
experiência, acesso a gente influente e, de quebra, dinheiro para se sustentar
por conta própria. Seu trabalho consistia, fundamentalmente, em assistir
sessões de tortura de prisioneiros políticos, monitorando-lhes os sinais
vitais, para evitar que viessem a expirar antes de revelar os segredos buscados
pelos agentes da repressão. Às vezes cabia-lhe, também, reanimar os
desfalecidos, para que o interrogatório tivesse prosseguimento.
O
sentimento de culpa deixado por essa experiência é matizado, em sua
consciência, por racionalizações do tipo “eu fiz o que tinha que fazer / se não
fosse eu, seria outro / os militantes de esquerda também cometiam brutalidades
/ no fundo, contribuí para a causa da democracia” etc. Seu currículo de
profissional exemplar é intocado pelas manchas desse passado sombrio. No
entanto, F. é um homem intranquilo, que ingere calmantes com frequência.
Gritos, gemidos e rostos de vítimas da repressão aparecem-lhe com assiduidade,
tanto em sonhos como em horas de vigília. A pior dessas assombrações, a mais
presente, é uma jovem professora de História, recém-casada e mãe de uma menina
de um ano. Considerada líder de uma célula “terrorista”, a jovem foi seviciada
com extremo sadismo e afinal jogada ao mar de um helicóptero, praticamente
morta – processo que F. acompanhou, auxiliando-o, do início ao fim.
A
jovem professora aparece sobretudo quando F. experimenta momentos prazerosos na
vida em família – o sexo com a esposa, uma viagem agradável, o aniversário de
um filho – como a cobrar-lhe a felicidade conjugal de que foi privada. Por
vezes, F. vê no rosto de uma desconhecida qualquer os traços daquela
professorinha, quarenta anos passados. Teria ela sobrevivido, contrariando toda
lógica?
As
aparições misteriosas, os pressentimentos incômodos e a sensação de perseguição
se intensificam à medida que F. se informa, pelo noticiário, da intenção do
governo de instalar uma Comissão da Verdade, que irá identificar (e punir, ele
assim o entende) os agentes da repressão dos anos de chumbo, a exemplo do
ocorrido na Argentina e no Uruguai. O fato de não ser militar não o
tranquiliza: F. sente que é questão de tempo para que o desmascaramento afinal
ocorra, fazendo ruir sua vida conjugal, profissional – sua vida, enfim. O
noticiário sobre a Comissão se amplifica em sua cabeça, o obseda, e pessoas na
rua, no trabalho, parecem fitá-lo de modo malicioso, ou hostil, como se já
soubessem de tudo.