F.
está aterrorizado, e precisa agir. Quer encontrar a professora de História,
explicar-se e pedir perdão. Quer fazê-la ver que ele não é mais aquele jovem
inconsequente, e sim um homem maduro, ciente de seus deveres, bom pai de
família, que se comove com o sofrimento alheio e se arrepende do mal que
causou. Pode inclusive ajudá-la financeiramente, como forma de compensação.
Viaja ao Rio atrás de seus rastos, imaginando poder encontrá-la viva.
Localiza-lhe a filha, com quem chega a trocar algumas palavras, sem se
identificar. Procura generais reformados, inquire-os sobre o paradeiro da
infeliz: tudo leva a crer que ela, como seria de esperar, está de fato morta há
muitos anos, havendo seus restos virado repasto da fauna marinha.
De
volta à capital, F. tem dificuldade em se concentrar no trabalho e aparentar
normalidade aos olhos da família. Esquece-se de coisas importantes,
atrapalha-se com tarefas cotidianas, demonstra ansiedade: todos notam que está
diferente, esquisito. Sem sucesso nas tentativas de fazê-lo se abrir, a juíza
insinua que ele deveria buscar o auxílio de um psiquiatra. Ele, porém, resiste
à ideia de se confidenciar com alguém da área médica, sempre temendo a delação.
E sente, por meio de pequenos sinais misteriosos (vozes, vultos, objetos que
somem e reaparecem), que há uma presença estranha, sobrenatural em sua vida: os
aflitos do DOI-CODI, a professora à frente deles.
Pressionado
pelo desespero, vendo-se sem saída, F. deixa de lado o racionalismo, que não
lhe traz sossego, e procura uma vidente de quem ouvira falar. A mulher lê sua
sorte numa borra de café, diagnostica que ele vive um momento de retorno do
passado, escreve num guardanapo e entrega-lhe um aforismo de Heráclito de
Éfeso, sobre a necessidade de “se livrar dos mortos”. Por vias tortuosas, F.
chega, em seguida, a um médium que atende numa espécie de choupana, em Águas
Lindas de Goiás (nome que sempre lhe pareceu grotescamente irônico). Mestre
Raimundo, como é chamado aquele mulato alto, de traços rudes, promete-lhe
entrar em contato com a “entidade” que o assombra. Ao fim de um ritual que, aos
olhos de F., combina charlatanismo descarado com fenômenos verdadeiramente
inquietantes, o Mestre lhe fala, com expressão enigmática e voz feminina: “Você
não dorme enquanto eu não dormir”.
F.
volta para casa, deita-se ao lado da esposa que ressona e, de fato, não
consegue conciliar o sono até o raiar do dia, quando enfim cochila, não muito
antes de o despertador arrancá-lo da cama para mais um dia de trabalho. A
insônia se repete à noite. No noticiário, F. vê que o projeto da Comissão da
Verdade ainda se arrasta, atacado por setores conservadores – sobretudo
militares da reserva – e visto com desconfiança pela grande imprensa. O
presidente da República defende a instalação da Comissão, a necessidade de
investigar o paradeiro das vítimas da ditadura, porém assegura que em seu
governo “não há lugar para revanchismo”. Isso, porém, não tranquiliza F., e na
realidade tampouco aumenta sua aflição: desde o início da insônia (ele dorme
cada vez menos, até passar a atravessar todas as noites e dias em vigília) o
cirurgião se vê tomado de uma modorra irresistível, o raciocínio torna-se lento
e decresce sua vontade de interagir com o mundo.
O
que segue é o declínio acelerado da vida de F.: a saúde o abandona
progressivamente; o casamento não sobrevive; os filhos se distanciam,
horrorizados com sua situação e comprometidos com a própria felicidade; as
investigações dos neurologistas sobre sua patologia se revelam infrutíferas e
ele, mais e mais debilitado física e psicologicamente pela falta de sono, é
afastado do trabalho e afinal aposentado por invalidez. Passa os últimos dias
num sala-e-quarto pouco mobiliado, prostrado numa cama da qual nunca se
levanta, assistido por enfermeiros que se revezam por turnos.
Numa
noite em que se acha sozinho, diante de uma TV a que assiste quase sem decifrar
o que é exibido, F. percebe a luz do banheiro acesa. Os sons provindos de lá, e
uma sombra em movimento projetada na parede, certificam-lhe de que há alguém
ali dentro. Ele nada faz, pois nada pode fazer. Sequer chega a se inquietar,
realmente. Afinal, sai do banheiro e adentra a suíte uma mulher, vestida de
camisola e enxugando o cabelo com movimentos agitados. O doutor a reconhece sem
dificuldade: é a professora de História, conservada em plena juventude, apesar
dos anos passados. Ela exala um perfume agradável, de banho. Apanha o controle
e desliga a TV, dizendo: “-Já chega de TV, né...”. Então se senta à beira da
cama e programa o despertador. Em seguida se deita sob as cobertas, abraça-o e
beija-o no rosto, dizendo docemente: “-Boa noite, querido...” Apreciando, com o
que lhe resta de sensibilidade, aquele aconchego, F. fica olhando para o teto,
inerte, por alguns minutos, até adormecer para sempre.
(Ilustração: Lupin)
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