A reza forte faz parte da nossa cultura, do nosso dia a dia. Rezamos para aquele amor voltar, para o filho chegar ileso em casa, rezamos para as coisas darem certo ou para, pelo menos, não darem muito errado. No futebol, então, a reza corre solta. Os menos crentes mas ainda um pouco supersticiosos, entre os quais me incluo, às vezes cruzam os dedos ou batem na madeira. Chegamos à sofisticação de construir um sistema hidrelétrico de dimensões continentais que, à míngua de reservatórios, depende bastante de orações para São Pedro.
Nesse contexto, era natural que a realização do mundial, à falta de planejamento responsável e eficiente, também dependesse um tanto de um certo esoterismo. Estamos recebendo milhares de pessoas em estádios ainda inacabados, alguns dos quais nem contaram com a indispensável visita dos bombeiros. O mais lógico, agora, o mais razoável, é acendermos velas para São Judas Tadeu, ou para qual seja o santo da nossa devoção. Sem deixar de cruzar os dedos.
(18/07/2014)
terça-feira, 5 de agosto de 2014
segunda-feira, 4 de agosto de 2014
O Brasil e o anão de costas quentes
Incomodado com a decisão brasileira de chamar para consultas o embaixador em Tel Aviv, um empregado da chancelaria israelense classificou o Brasil, de modo ofensivo, como “um anão diplomático.” Trata-se, sem dúvida, de gesto ousado, e de uma ousadia algo delirante, um representante de país tão pequeno, com uma população tão pequena (Israel conta com 7.908 milhões de habitantes, quase a metade da população do estado do Rio de Janeiro), adjetivar como “anão” um país tão grande, de população tão numerosa. Claro, o Sr. Palmor não se referia a essas medidas de grandeza, mas sim a uma dimensão, senão intangível, mais difícil de medir, a da influência diplomática.
Bom, acontece que ainda aí a diferença é gritante. Com elegância, além de sublinhar que o Brasil não costuma usar termos pejorativos para se referir a nações amigas, o ministro Figueiredo informou que o Brasil é um dos 11 países que se relacionam com todos os membros da ONU. Poderia ter acrescentado que o país integra um arranjo político-diplomático (o BRICS) que congrega nada menos que 18% do PIB mundial e quase a metade da população do planeta.
O Brasil, decerto, não é uma potência global, mas a dimensão de Israel no concerto das nações tampouco impressiona. Sobrevivendo à margem de resoluções da Assembleia e do Conselho de Segurança da ONU – as quais ignora –, além de desrespeitar a Corte Internacional de Justiça, o Estado de Israel tem sido marginal em relação ao Direito Internacional, e costuma amargar isolamento político nos âmbitos multilaterais. A recente decisão do Conselho de Direitos Humanos da ONU de acatar a solicitação da Autoridade Palestina para que sejam investigados crimes contra a humanidade na Faixa de Gaza certamente não reflete o prestígio do “gigante” Israel. Apoiada por 29 dos 46 membros do Conselho, a medida foi contestada apenas pelos EUA de Barack Hussein Obama (que radicais em Tel Aviv chamam de “árabe anti-judeus”), enquanto os europeus guardaram silêncio embaraçado e embaraçoso.
Em 2012, a Assembleia Geral da ONU, em peso (138 votos a favor), aprovou o status da Palestina como Estado observador. Abraçados a Israel, do lado derrotado, além de EUA, Canadá e República Tcheca, estiveram atores-chave da cena global como Palau, Nauru e Micronésia.
Ao afirmar que o Brasil “ignora o direito de Israel à autodefesa”, o porta-voz utilizou uma das surradas táticas retóricas sionistas (outra, igualmente bolorenta, é a tentativa de intimidar os críticos das políticas israelenses, tachando-os de “antissemitas”). Trata-se, neste caso, de contestar algo que não foi dito, de modo a ignorar o que de fato está em causa. Poderíamos chamá-la de tática da cegueira, ou cortina de fumaça. Em psicologia, talvez seja uma espécie de fuga dissociativa. Afinal, o Brasil nunca ignorou o direito de Israel se defender dos foguetes do Hamas (inclusive, em nota recente, condenou esses ataques à população israelense): o que critica veementemente é a “desproporcionalidade da resposta” – aliás, um modo suave de abordar o massacre deliberado de civis.
Contabilidade recente da carnificina em curso registrava 757 palestinos assassinados, dos quais 571 civis (dentre eles, nada menos que 182 crianças e 95 mulheres). Do lado israelense, a incursão bélica pré-eleitoral cobrara a vida de 30 pessoas, quase todas militares.
Ora, embora sejam conhecidas táticas perversas do Hamas que expõem a população civil (e que constituem, sem dúvida, crime de guerra), ninguém é obrigado a acreditar que esse quadro ilustre um “direito de defesa”. Crianças abatidas numa praia em Gaza, inclusive quando tentavam escapar, em desespero, não podem ser consideradas alvo militar por nenhum ser humano. E o comissário-geral da UNRWA (Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina), Pierre Krähenbühl, tem toda a razão de indignar-se com o bombardeio terrorista a uma escola em Beit Hanoun que servia de abrigo a refugiados – e cujas coordenadas haviam sido informadas não menos que 12 vezes às autoridades de Israel, para que, em respeito à lei internacional, a instalação fosse poupada. “Esses palestinos, muitos deles mulheres e crianças, tinham chegado a esta escola em busca de refúgio, acreditando que uma instalação da ONU ofereceria um maior nível de segurança. Essa crença foi baseada no compromisso vinculativo da comunidade internacional. E também na obrigação de ambas as partes de combater sob a lei internacional e respeitar a inviolabilidade das instalações da ONU”, disse ele.
Quando o líder do Hamas, Khaled Meshaal, diz sentir “orgulho” do conflito atual, e o porta-voz da chancelaria israelense se permite tecer comparações entre o massacre e um jogo de futebol, pode-se ter uma ideia do grau de insanidade que alimenta a disputa. Nesse quadro desolador, agravado pela ausência, no cenário internacional, de estadistas dignos do nome, é de louvar o gesto da diplomacia brasileira. Ela resolveu agir, em vez de limitar-se a lançar nobres palavras ao vento.
(25/07/2014)
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