sábado, 19 de agosto de 2017

O riso da História, ou: das proezas que aguardam os pequenos

Estava aqui matutando com os meus botões (embora estivesse de camiseta) sobre como são curiosos os desígnios da História... Muito curiosos, imperscrutáveis até. Senão, vejamos. Ela não permitiu que um canalha brilhante como Carlos Lacerda se sentasse à cadeira de Presidente da República, que tanto almejou, e pela qual quase tudo fez. Igualmente vetados foram postulantes como Leonel Brizola, Franco Montoro, Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, todos políticos acima da média, ou mesmo bem acima. Por outro lado, quis o destino que o assento máximo da nossa República fosse utilizado, quase em sequência, pelo general Figueiredo, por José Sarney (autor de “Marimbondos de fogo”) e por Itamar Franco, homens em que se sobressaía a medianidade. 

E eis que, nos dias que correm – correm e tropeçam, e sacolejam de modo atordoante -, a Presidência vem sendo ocupada pelo ex-operador do Porto de Santos, ora encrencadíssimo com a Justiça, que a entrega, quando se ausenta do país, às nádegas de Maia Jr., um tipo quase sem qualquer biografia, que se autodefine como integrante do “médio clero” da nossa conhecida Câmara dos Deputados. E que me faz lembrar o Akáki Akakiévitch de Gógol, definido pelo autor mais ou menos assim: “um homem que baixou à sepultura sem jamais haver realizado um só ato excepcional.”

Digo isso e me lembro de que Zico e Sócrates jamais ergueram o caneco de campeões do mundo pela Seleção Brasileira. Mas Ânderson Polga, sim.

A História é de um cinismo admirável.


terça-feira, 30 de maio de 2017

Meninas más

Transparência




Ainda falando de anedotas. Há alguns anos, jornais do Rio de Janeiro noticiaram a prisão de um estelionatário português, morador da Zona Norte da cidade, que havia se apossado de um talão de cheques alheio e feito umas comprinhas, mas não se recusara a atender ao pedido de uma vendedora para que anotasse seus dados no verso do cheque. Como se pode imaginar, a polícia não teve trabalho para chegar à casa do sujeito e recolhê-lo para os procedimentos de praxe. À época não faltaram, claro, as previsíveis piadas maldosas dando conta de um suposto déficit intelectual dos nossos irmãos lusitanos. Nadando contra essa corrente, comentei com alguém que o episódio, se demonstrava algo, era não a burrice mas a espantosa honestidade dos portugueses: afinal, pelo que se via, em Portugal até mesmo o golpista agia com lisura!

Digo isso porque acabo de ler que, em suas diligências na residência do pobre senador afastado Aécio Neves na av. Vieira Souto, a Polícia Federal teria encontrado comprovantes de depósito identificados como “Cx 2”. A defesa do investigado, como lhe compete, já se apressou em afirmar que “Cx 2” não significa “Caixa 2”, como vocês estão pensando. Aliás, não sei o que pensar a respeito: estamos diante de um caso semelhante ao do supracitado Joaquim, ou de algo mais sofisticado, como uma tentativa de imitar a carta roubada do conto de Allan Poe, que passa despercebida pela polícia por estar demasiado à vista?

Sorry, dear

Gosto muito de uma anedota envolvendo o lexicógrafo estadunidense Noah Webster, pai do famoso dicionário que leva seu nome. Flagrando-o na cama com a secretária, sua esposa desabafa:

“-Webster, eu estou surpreendida!” 
Embora em situação desfavorável, o marido não resiste a corrigi-la: 
“-Desculpe, querida, mas você está surpresa. Surpreendido fui eu.”

Lembrei disso ao ler no Valor de hoje (26/5) a seguinte coisa:

"Naquela quarta-feira à noite em que considerou renunciar, Temer sentiu que era alvo de uma indignidade. 'Não vou me submeter a um linchamento político', disse a interlocutores próximos. 'Eu tenho uma biografia', ressaltou, mencionando suas obras de direito constitucional e a quantidade de exemplares vendidos. 'Já dei aula para 50 mil alunos, já fui lido por mais de 400 mil pessoas.'"

Ora, vamos e venhamos: isso não é biografia, é bibliografia.

sexta-feira, 31 de março de 2017

Entre "tenentes togados" e longevas ratazanas

(Deu no Painel do Leitor da Folha de S. Paulo de hoje. Edita daqui, enxuga de lá, acabou ficando incompreensível. A íntegra era esta aqui.)

Resumo do artigo da tríade de procuradores publicado na Folha de hoje (Tendências/Debates, 30/03/2017): os políticos (e empresários) não podem estar acima da lei; juízes e procuradores, sim. Ou seja, em nome da nobre - e, de resto, inquestionável - causa do combate à corrupção, os fins justificariam os meios, e toda tentativa de conter abusos deve ser considerada "ameaça", tentativa de "intimidar autoridades". Ora, a deplorável anistia ao "caixa 2", aventada até nos mais altos tribunais, não se confunde com a bem-vinda iniciativa de coibir o abuso de autoridade. 

Difícil não pensar que estamos entre a cruz e a espada: de um lado, o messianismo de "tenentes togados", que negam a política e se ofendem com toda crítica; de outro, o descaramento crescente de representantes da velha casta política que há muito se locupleta em tenebrosas transações.



Nessa atmosfera rarefeita, uma lufada de ar fresco vem, por exemplo, do surgimento de associações como o Coletivo Transforma MP (constituído por procuradores que desejam um Ministério Público aberto, plural e democrático) e da luta diária de uma minoria de parlamentares que não se deixa seduzir, seja pelos holofotes da mídia, seja pelo atraente tempero dos "acarajés".

quinta-feira, 30 de março de 2017

Lolito (ou Doria-estepe)

Aspirante a atriz, a moça "vaza" para a imprensa que passou a noite na suíte de um certo cantor famoso. Inevitavelmente entrevistada, ela fala, excitada, de viagens que teriam feito juntos a Dubai e Malibu. Incontinente, exibe uns presentinhos que ganhou do cantor, como um urso de pelúcia gigante e um celular banhado em ouro. Quando a reportagem afinal interroga se estão namorando, ela desconversa, muda o tom, quase disfarça o sorriso franzindo a testa: "Nada disso... nós somos apenas bons amigos... qualquer coisa diferente disso é pura especulação, fofoca."

Esse é o esquema da entrevista de página inteira (!) do apresentador Luciano Huck a um dos jornais de maior circulação do país. Sim, a Folha de S. Paulo se prestou a fazer um balão de ensaio para o PSDB, testando uma "cara nova" de corte conservador (mas jovial) e sem ranço anti-PT. O político-não-político se mostrando presidenciável-não-presidenciável. Quanto a Huck, pode-se - e deve-se - questionar suas credenciais políticas, mas não há como negar que ele conhece a engrenagem da indústria de celebridades.


Será que vai colar?

sexta-feira, 24 de março de 2017

No país precário


Há um par de horas, eu perambulava pela rodoviária de Brasília, “vagaroso, de mãos pensas”, sorvendo o ar pesado e quente enquanto ruminava sobre o indescritível projeto de terceirização irrestrita aprovado pela igualmente indescritível maioria de deputados da legislatura corrente, nesta quadra de nossa História também de difícil descrição. Havia acabado de ler o belo artigo do professor Vladimir Saflate na Folha de S. Paulo de hoje (“O fim do emprego”), escrito com raiva pungente e contagiante, e visto, numa banca, a capa da última edição do jornal da família Marinho, tão abjeta quanto previsível.

Então me deparei com uma cena que me impressionou: dois camelôs – um homem e uma mulher – brigavam incessantemente, indo quase às vias de fato, por um palmo de espaço no vão da rodoviária, onde queriam expor suas mercadorias, em meio à pletora de vendedores ali instalados. Ele ofertava capas e carregadores de celular; ela expunha roupas femininas, shorts e blusas pelo que pude ver.  A discussão parecia não ter solução à vista, pois não havia como decidir quem tinha mais direito àquele palmo em disputa. À volta deles, claro, formava-se um agrupamento crescente, com aquela passividade de curiosos (eu mesmo observava a cena num espanto imóvel), em meio aos quais se podiam adivinhar alguns olhares sedentos, de apostadores de rinhas de galo. Uns gaiatos imitavam sirenes de polícia; outros criavam uma onda de gritos abafados, sopro de combustível no fogo em brasa.

Afastei-me dali sem saber como a coisa terminou. A bem da verdade, a coisa não termina: naquele lugar-síntese, por onde circulam diariamente milhares de trabalhadores pobres, os nossos palestinos que vão e voltam de Israel a cada jornada, a disputa intransigente, desesperada por um palmo de chão para vender mercadoria barata arranjada de contrabando expunha a precariedade que aí está, dando uma amostra do horror que se anuncia.

(Imagem: Rugendas, "Castigos domésticos")

quinta-feira, 23 de março de 2017

Data venia, omnia vanitas

Em 1988, finda a ditadura, mas com o soturno SNI ainda em atividade, o humorístico Planeta Diário (autodenominado "o maior jornal do planeta") registrou uma missão presidencial com a impagável manchete: "Depois da China, Sarney irá à merda". Após consultar seus assessores, conta-se, o mandatário Ribamar Sarney - acidentalmente catapultado ao mais alto posto da República - houve por bem nada fazer a respeito da debochada ofensa. 

Já em 2017 (portanto, supõe-se, na vigência de um amadurecido estado de direito democrático), um juiz de piso manda "coercitar", isto é, intimidar, um blogueiro que conta com seu desapreço. O motivo declarado seria apurar um vazamento indevido de informação - prática, aliás, em que o próprio magistrado já incorreu notória e impunemente. Para piorar, o buliçoso juiz teria usado como justificativa o argumento de que, por não ter canudo de jornalista, o blogueiro em questão não faria jus ao sigilo de fonte. Ora, é improvável que, com todo o seu mérito, o Meritíssimo desconheça o texto do artigo 5º, XIV, da Lei Maior: "é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional"; ou ainda que ignore a decisão do STF, de 2009, segundo a qual é inconstitucional a obrigatoriedade de diploma de jornalista para o exercício de atividade na área.

Estranhos tempos, estes que engendram agigantados liliputianos...

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Peripécias do punitivismo

Em dezembro último, o ministro Luiz Fux matou no peito mandado de segurança impetrado por Bolsonaro Jr. e expediu liminar que, indo além do solicitado, sustava a tramitação do Projeto de Lei que tratava das famigeradas  “10 medidas de Combate à Corrupção” - proposta, por assim dizer, de “iniciativa popular” encaminhada pelo Ministério Público Federal à Câmara dos Deputados. Recitadas na grande mídia como tema sacrossanto, nosso roteiro para o expurgo e a salvação, as propostas eram ruins no geral, péssimas aqui e ali, e por isso haviam mesmo de sofrer modificações ao chegar ao Legislativo. O problema central daqueles “mandamentos” da Procuradoria, a meu ver, era a perigosa aposta no punitivismo, o incentivo ao encarceramento em massa que tem se revelado espantosamente absurdo, aviltante e contraproducente no que diz respeito ao combate à criminalidade.

E tratavam-se, afinal, de propostas, algo que, por definição, pode ser acolhido ou rejeitado, total ou parcialmente.  Que boa parte de Suas Excelências tenha legislado, na ocasião, movida por preocupações corporativas ou mesmo pessoais, não tira o mérito das alterações feitas (“desfigurações”, queixam-se, zelosos, os comentaristas nos jornais, rádios e TVs), e menos ainda retira dos parlamentares sua prerrogativa de decidir sobre as sugestões que lhes chegam. 


Pois bem, cumprindo a decisão liminar, o presidente do Senado Federal devolveu, nesta quinta-feira (16/2) a batata quente à Câmara, e assim persiste o que podemos chamar de impasse institucional. Interessante é a coincidência de datas: ora, justamente nesta data, por unanimidade de votos (o que, por óbvio, inclui o voto de Fux), o plenário do STF decidiu pela responsabilização do Estado pela submissão de presos a condições carcerárias degradantes, prevendo “indenização em pecúnia”.

Quero crer que seja decisão histórica, que, justamente pela dificuldade que seu cumprimento impõe, virá forçar mudanças bem-vindas em nossos códigos e no falido sistema penitenciário, com a adoção de penas alternativas à de reclusão e a concomitante reforma dos presídios, para que, não mais superlotados, possam servir minimamente ao propalado objetivo da recuperação do apenado  Assim, quem sabe, nossas prisões deixarão de ser o que são hoje: degradantes escolas do crime (que, portanto, só o alimentam), fábricas de insanos, instrumentos de vingança em moldes medievais.

(Foto: "O batedor de carteiras / Le pickpocket", Robert Bresson, 1959)

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Do ruim ao péssimo, ou: tempos de murici





As 10 propostas do Ministério Público contra a corrupção, que compreensivelmente encantaram milhares de corações e mentes nesta quadra infeliz da nossa História, têm pontos aproveitáveis, mas são ruins no geral. No atacado, o seu problema é, em primeiro lugar, apostar na hipótese segundo a qual penas maiores, mais severas, garantem um maior cumprimento da lei, quando a experiência tem ensinado, ao longo do tempo, que o maior cumprimento da lei está associado, sobretudo, ao temor da punição. Em segundo lugar, as propostas passam ao largo de uma das grandes causas da impunidade, que é a morosidade do Judiciário decorrente de sua própria ineficiência (ou eficiência seletiva) – para não falar dos desvios de conduta de seus membros.

Ora, a resposta que nos oferecem os diligentes procuradores sensíveis à luz dos holofotes é: há corrupção porque há garantias demais (algo semelhante ao argumento da escola econômica hegemônica, de que não há crescimento porque há direitos trabalhistas em excesso). E aí, taca-lhe pau no habeas corpus, na prescrição penal, na presunção de inocência e, afinal, no direito à ampla defesa.

Das medidas do MP, se mantidas intocadas e tornadas lei, emergiria um Poder Judiciário hipertrofiado, impune em suas falhas, autorizado a julgar “boa fé” com base em pura subjetividade, e até mesmo com base em provas ilícitas! No varejo, as propostas trazem a banalização do crime hediondo, o estímulo à disseminação de práticas persecutórias no ambiente de trabalho e, inclusive – pasmem! – a possibilidade de criação de uma verdadeira indústria de denúncias, na medida em que preveem uma retribuição ao reportante de um percentual do montante restituído ao erário em razão da denúncia.

Ou seja, o mínimo que se pode dizer das propostas do MP é que elas dão margem a muito debate. O fato de serem discutíveis, contudo, não justifica o descalabro a que assistimos, neste momento, na Câmara dos Deputados. Ora, o relatório de Onix Lorenzoni, aprovado pela Comissão Especial na madrugada passada, foi colocado sorrateiramente na pauta de hoje do plenário, e já está em discussão como matéria urgente. Por que essa sangria desatada? Talvez seja – até as baias de compensado da casa de leis o sussurram – porque também hoje, 24 de novembro, Marcelo Odebrecht deve concluir seu acordo de delação premiada com a Procuradoria-Geral da República – delação esta que, dizem os jornais, pode atingir mais de uma centena de políticos, incluída a cúpula do governo do Sr. Michel Temer, a começar pelo próprio. A pressa é, portanto, compreensível: assim à sorrelfa, dá para imiscuir no projeto uma modificação na Lei de Lavagem de Ativos que permitiria, na prática, uma interpretação favorável à anistia ao crime de Caixa 2, algo que Renan Calheiros e seus sócios aguardam, no outro lado da Esplanada, com ânsia expectante.

Em suma, as propostas de membros do Ministério Público alçados à condição de salvadores da pátria são, no geral, perniciosas; mas a resposta que a base aliada do governo bandoleiro desenha no plenário da Câmara é simplesmente espúria.



São tempos áridos. Tempos de murici.

(Imagem: Hieronymus Bosch. "The Haywain Triptych")

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Sem título

Em 2001, eu estava na fila do Detran/RJ, tratando de renovar minha carteira de habilitação, quando ouvi um zumzumzum de que os EUA estavam sendo atacados (e todos, perplexos, já tentávamos entrever as consequências do evento). Hoje de manhã, a caminho do "exame médico" para nova renovação do documento, eu digeria a informação - não de todo surpreendente, mas nem por isso menos impactante - de que Adolf Trump havia sido eleito para a Casa Branca. E tentava, como os demais, entrever as consequências do evento.

Interpretem.