segunda-feira, 6 de abril de 2009

crime na cama


Já no seu nascedouro, a narrativa policial ligava-se indissociavelmente ao prazer. Criando um gênero literário, Poe criava um novo tipo de leitor (o leitor desconfiado) e um novo personagem, o detetive de hábitos extravagantes, noturno e peripatético (o seu se chamará Dupin), dotado de capacidade analítica tão fora do comum que lhe permite resolver – por gosto, não por ofício – o mistério mais intrincado antes de mesmo de visitar a cena do crime. Comparada a ele, a polícia com seu apego ao senso comum e seu afã de descobrir o que se esconde (que a torna muitas vezes cega para o que se oferta na superfície) parecerá sempre irremediavelmente obtusa. O que importa ressaltar aqui, no entanto, é o prazer intenso que esse homem – aliás, avesso ou indiferente aos chamados da carne – desfruta no embate entre o mistério e seu intelecto privilegiado.
Outro exemplo desse prazer reflexivo encontraremos ao acompanhar um Dupin brasileiro, paulistano – o velho Leite de Luiz Lopes Coelho – na resolução de um mistério. De início, há o desconforto, inquietação de fera faminta:

“Entre desassossegos esperava o velho Leite a última informação para fechar a cadeia de raciocínios sobre o mistério do Teatro Brasília. Como sempre, agitado, falando sozinho, e fazendo acompanhar as palavras inaudíveis com gestos e meneios de cabeça. Assim se comporta enquanto não sitia o mistério, enquanto não o desvenda.”

E logo:

“Sentou-se o velho Leite. De repente seus gestos acalmaram-se, deixou de mover os lábios no solilóquio nervoso, apaziguou-se, como se um estranho sortilégio o tivesse tocado. Galeno o conhecia muito bem: o mistério estava no fim.” (COELHO: 1962: 32-33)

Roland Barthes nos oferece algumas caracterizações daquilo que denomina texto de prazer, “aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura” (BARTHES: x: 20): seriam textos de prazer aqueles textos marcados pela brevidade, nunca frígidos, sempre coquetes, isto é, ciosos do objetivo de seduzir o leitor, e portanto de jamais fatigá-lo, jamais oferecer-lhe a desculpa para abandonar a leitura. O autor traça ainda uma linha, confessadamente pouco nítida, entre o texto do prazer e texto do desejo. Assim, a páginas tantas, afirma que os livros “[…] ditos ‘eróticos’ […] representam menos a cena erótica do que sua expectativa, sua preparação, sua escalada; é nisso que são ‘excitantes’; e, quando a cena chega, há naturalmente decepção, deflação” (IDEM: ibidem: 68). Seriam estes, pois, antes textos do desejo que do prazer. Noutro momento, Barthes aproxima o suspense narrativo do strip-tease, argumentando que numa e noutra arte, “[…] toda a excitação se refugia na esperança de ver o sexo (sonho de colegial) ou de conhecer o fim da história (satisfação romanesca)” (IDEM: ibidem: 16).
Qual definição se aplicaria com maior propriedade ao gênero criado por Poe? Não se pretende aqui fechar questão a esse respeito. Mas podemos desde já propor como hipóteses, em primeiro lugar, que a narrativa policial engendra não apenas a representação de um prazer (o gozo intelectual do detetive super-dotado), mas ela mesma se empenha na mobilização de um prazer, aquele do leitor cismado que é preciso seduzir; em segundo lugar, que na sua forma clássica (aquela de Poe, de Conan Doyle, de Gaboriau), seu modus operandi terá correspondido àquele do strip-tease, em que o grande deleite provém da revelação final (do clímax, portanto), enquanto, nas suas desconstruções e reconstruções contemporâneas – incluídas aí as recentes experiências brasileiras –, essa narrativa terá se aproximado sobretudo da novela erótica, na medida em que o ritual de apresentação da trama, do enigma, a sua complexificação, as sucessivas alternâncias entre tensão e relaxamento… tudo isso é mais valorizado que a consumação final. O que, em todo caso, importa reter aqui não é a distinção entre a narrativa policial clássica e a contemporânea (distinção que, por sinal, começaria a ser problematizava se salientássemos, no strip-tease, o desnudamento e não a revelação final…), mas sim o caráter marcadamente erótico deste gênero literário, independente do maior ou menor grau de pudor desses textos no que tange às coisas do sexo.
A investigação do erótico nesse gênero marcado pela representação da morte nos levaria ainda por outras vias, relacionadas a aspectos da recepção e da produção desses textos. Assim, salientaríamos os aspectos de clandestinidade e de descompromisso que habitualmente pontuam o relacionamento do leitor com esses textos. Ora, não obstante a valorização crítica de que o gênero se terá beneficiado ao longo do tempo – em boa parte estimulada pelo fato de autores acima de qualquer suspeita como Poe e Borges e Eco o haverem freqüentado –, a narrativa policial figura ainda como um tipo de leitura que o leitor refinado acolhe como amante, não como esposa . Uma amante, é verdade, mais facilmente apresentável nos círculos sociais que a ficção-científica ou a pornografia, no entanto sempre amante, isto é, companheira anônima de deleites fugazes. Na França, as novelas policiais ganharam a classificação de leitura de gare, isto é, leitura de estação de trem, aquela que nos entretém durante uma espera, uma baldeação; nos pragmáticos EUA, atentou-se para o baixo custo das histórias de detetive (fator decisivo para sua popularização), e elas ali foram batizadas como dime -- a décima parte do dólar; os italianos, por sua vez, ressaltaram-lhe o vestuário conspícuo (eram amarelas as revistas italianas de crime e mistério), e a chamaram giallo.
Ofertam seus atributos aos transeuntes, por um preço acessível, e se distinguem pelo vestuário… faltaria muito para associarmos essas narrativas populares às prostitutas de rua?
Depreende-se do exposto acima que o leitor contumaz da narrativa policial busca nela tão-somente o prazer, a evasão: não o move, por exemplo, o objetivo de aprimorar sua ‘bagagem cultural’ (para isso há os grandes clássicos, o cânone literário, as experimentações vanguardistas), ou o de se aprofundar em algum grande tema da atualidade (o Oriente Médio, o genoma, o aquecimento global). De outra parte, ao menos no caso brasileiro, a produção de novelas policiais se afigura um trabalho de amador, de diletante: é raro o caso de autor profissional, ou em todo caso especializado, como ocorre na França ou no mundo anglo-saxão. Na orelha de um de seus livros, o precursor Luiz Lopes Coelho é apresentado como “cultor bissexto das belas-letras”, e dele se sabe que esteve à frente de instituições como a Cinemateca Brasileira e o MASP.
A leva de novelas policiais brasileiras que surge na década de 1990 é marcada em parte pela incursão eventual de celebridades (apresentadores de TV, produtores musicais), mas sobretudo pela produção mais ou menos regular de autores já estabelecidos e, se podemos dizê-lo, realizados em suas respectivas profissões, embora não necessariamente conhecidos do grande público. Assim temos, por exemplo, o músico Tony Belloto (o mais jovem da lista); o sociólogo Reginaldo Prandi ; o psicanalista García-Rosa; o delegado de polícia aposentado Joaquim Nogueira; o diplomata Georges Lamazière. Nessa pequena sociologia da novela policial brasileira que tentamos esboçar, arriscaríamos dizer que, de comum entre esses autores (de biografias e estilos mais ou menos díspares entre si) haveria o desejo, realizando-se na maturidade, de enveredar pela literatura através de um gênero considerado ‘menor’, e de incipiente desenvolvimento no país, gênero esse de que são leitores devotos. Tudo isso, em suma – a situação de conforto material, de realização profissional, a opção por um gênero freqüentado como hobby desde a juventude e desabitado pelas ‘vacas sagradas’ do campo literário – falando-nos de uma produção literária que se configura como conquista do desejo, e que se realiza com apreciável grau de liberdade.

No início, caracterizamos o detetive como uma criatura avessa aos chamados da carne, um puro intelecto. Aliás, de Monsieur Dupin desconhecemos qualquer característica física, tratar-se-ia de uma espécie de inteligência descarnada. E os crimes que investiga tampouco se relacionam a apelos incontidos do baixo ventre: a respeito de Maria Roget, por exemplo, cujo cadáver é encontrado boiando num rio, com o vestido “[…] bastante rasgado e aliás em grande desordem”, sabemos que “o laudo médico afirmou com convicção o caráter virtuoso da morta” (POE: 1965 [1842]: 98, grifo nosso). Com o thriller norte-americano, nos anos 1940, o chamado do sexo fará sua entrada no gênero, caracterizada pela figura da mulher fatal, sedutora, de curvas perigosas, muitas vezes cliente do detetive, agora profissional. Segundo os mandamentos clássicos do gênero, no entanto, o detetive – cujo caráter jamais ocultará certo traço de misoginia – não se deixará envolver senão por aventuras amorosas fortuitas, mantendo-se alheio a questões conjugais e devotado ao combate ao crime .
A novela policial brasileira contemporânea, refletindo uma época em que a ‘onipotência do pensamento’ é posta em xeque e um contexto social em que a ‘restauração da ordem’ por parte do representante da lei é amplamente desacreditada, oferecerá novas representações do protagonista investigador, mais críveis por parte do leitor, mais ‘realistas’ por assim dizer. Assim, o investigador, que na passagem pelo noir já se despira de ranços aristocráticos para se tornar um assalariado, será, em nosso contexto, um policial de classe-média amoroso de seu ofício, procurando pautar-se pela honestidade num ambiente hostil (o Espinoza de Garcia-Roza, o Venício de Nogueira, o delegado Paixão de Prandi); um escritor casualmente envolvido numa trama que precisa deslindar (o Chico Motta de Lamazière); um coadjuvante na resolução dos mistérios que investiga (o detetive Bellini de Bellotto). Todos eles ‘homens comuns’, sujeitos ao erro, ao medo e à indecisão, fisicamente identificáveis, de quem conhecemos os gostos culinários… e sexuais.

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