terça-feira, 7 de abril de 2009
“Alguma vez te passou pela cabeça, um instante curto que fosse, suspender o tampo do cesto de roupas no banheiro? Alguma vez te ocorreu afundar as mãos precárias e trazer cada peça ali jogada?”- pergunta-se, a certa altura, o protagonista do romance Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar. A imagem do cesto de roupas sujas que revela os segredos, a intimidade da família é sugestiva para imaginar o lugar que certos autores ocupam na literatura de seus países. Digamos, por exemplo, que a literatura brasileira fosse uma casa. Na sala de jantar, nos cômodos principais, toparíamos com um bom número de autores acima de qualquer suspeita, presença segura em todo cânone: Machado, Graciliano, Rosa, Cecília, Clarice, os mais destacados poetas da geração pós-45 etc. Noutros cômodos franqueados à visitação (a casa, suburbana, periférica, não é pequena), outros tantos escritores se aglomerariam, alguns indo e vindo, dentre eles até alguns irremediáveis ‘marginais’.
E se, saturados por um instante dos deleites proporcionados pelos inquilinos mais ilustres, ou simplesmente levados pela curiosidade, resolvêssemos escapulir em direção à cozinha, à área de serviço, aos exíguos cômodos dos subalternos – banheiros inclusive? O que encontraríamos? Decerto um número não menor de escritores e escritoras, alguns autores de vasta obra apreciada por imensa legião de leitores apaixonados, mas ausentes das conversações da ala principal (excetuando-se algum comentário jocoso ou uma rara condescendência). Dentre eles certamente se destacaria Cassandra Rios. Pseudônimo de Odete Rios, paulistana do bairro de Perdizes, filha de espanhóis, Cassandra publica seu primeiro livro, Volúpia do pecado, em 1948, com apenas 16 anos (na época, Nélson Rodrigues assinava como Suzana Flag suas histórias de folhetim). No centro da trama, a descoberta do amor e do desejo sexual entre duas mulheres, temática que se faria presente em boa parte dos mais de 30 títulos que iriam compor sua obra. Na década de 1960, Cassandra bateria recordes de vendas, chegando à marca, pelo que consta, de 300.000 exemplares vendidos. Era, pois, na atmosfera de um Brasil conservador, repressor (na vigência do infame AI-5 a autora teria muitos de seus livros censurados), hipócrita em relação a quase tudo relacionado a sexo, que os livros de Cassandra –com sua linguagem simples e capas atraentes, quase sempre retratando uma mulher seminua- circulavam, consumidos por leitores ávidos, disseminando-se feito um vírus, como que promovendo um permanente carnaval, subterrâneo e silencioso, na intimidade do país cinzento. Nessa espécie de freqüência AM da nossa literatura, que deliciava secretárias, empregadas domésticas, donas de casa, operários, comerciários, toda uma legião de brasileiros beneficiados por campanhas massivas de alfabetização (e muita gente douta que talvez preferisse não se identificar…), vibravam também os escritos de Adelaide Carraro (Eu e o governador, Os padres também amam), que dividiria com Cassandra o posto de grande pornógrafa brasileira – colhendo os louros e óbices correspondentes a essa distinção.
Em Eu sou uma lésbica –publicado como folhetim na saudosa revista Status, entre janeiro e abril de 1980- o leitor encontrará a crença apaixonada no poder revelador da palavra que caracteriza a literatura de Cassandra. Some-se a ela uma objetividade tomada de empréstimo do flagrante jornalístico (nela, mais que nas aventuras pela teoria psicanalítica, reside a força expressiva da autora) e um interesse em lançar luz sobre tabus, e pode-se ter uma idéia do porquê de Cassandra haver envolvido e deleitado tantos leitores através dos anos. Pode-se gostar ou não dessa história da iniciação amorosa da pequena Flávia com Dona Kênia (ou, mais exatamente, com os seios e os pés de Kênia), do amadurecimento afetivo de Flávia, hesitante na busca de sua identidade homossexual… mas dificilmente, uma vez iniciada a leitura, o leitor ou a leitora poderá abandoná-la antes do desfecho trágico. Assim é a literatura de Cassandra, prenhe (volto à lavoura de Raduan), “da energia encaracolada e reprimida do mais meigo cabelo do púbis”.
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Pedro,
ResponderExcluirBota uns trechos "selecionados" em um post, valeu? Me interessa muito....